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A Herança Digital nos EUA e na Europa: ponderações entre os direitos à privacidade e à herança.


      Antigamente, fotos, cartas, músicas, documentos e vídeos eram fixados em objetos tangíveis, tais como livros, CDs e DVDs e, após o falecimento de uma pessoa, era suficiente aos herdeiros dirigir-se à residência ou ao escritório do falecido para tomar posse desses bens, fossem eles de valor econômico ou não. Atualmente, porém, boa parte desses bens são digitalizados e armazenados em computadores, serviços de nuvem, e-mails e redes sociais, o que traz novas questões para o Direito.  

As regras sucessórias relacionadas aos bens tangíveis, de maneira geral, já foram estabelecidas há bastante tempo. Em relação aos bens digitais, contudo, os problemas começam no fato de os próprios herdeiros, geralmente, não saberem sobre a sua existência ou, ao tomarem conhecimento, não terem como acessar as contas nas quais os bens estão armazenados.  

Também não existe apenas um tipo de bem digital. As regras de sucessão a que estão sujeitas uma foto ou um filme produzido pelo falecido são, em princípio, distintas daquelas aplicáveis às músicas armazenadas em sua conta no Spotify ou aos livros armazenados na conta da Amazon. A maioria desses bens, vale dizer, estão em contas controladas por provedores de aplicação, o que implica a necessidade de, no mínimo, considerar a relação contratual estabelecida entre o provedor e o falecido.  

Por sua vez, ainda que boa parte desses bens tenham apenas valor emocional, o Código Civil é claro ao estabelecer que bens de caráter não patrimonial podem ser objeto de sucessão, tendo em vista o disposto no art. 1857, §2º, a saber:  

Art. 1.857. Toda pessoa capaz pode dispor, por testamento, da totalidade dos seus bens, ou de parte deles, para depois de sua morte. § 

 2 o São válidas as disposições testamentárias de caráter não patrimonial, ainda que o testador somente a elas se tenha limitado. 

 

Há ainda bens digitais de elevado valor econômico. Cartas, manuscritos, composições musicais armazenadas em nuvem bem como nomes de domínio, canais no Youtube, páginas em redes sociais e personagens criados para jogos online podem valer uma considerável quantia. Quando se trata de celebridades e pessoas públicas, por sua vez, mesmo textos e fotos ordinárias podem adquirir elevado valor.  

Vale ressaltar que, se artistas armazenarem suas criações em contas digitais, mas os provedores de aplicação não conferirem acesso aos herdeiros, será de pouco valor o art. 41 da Lei nº 9.610/98, segundo o qual “os direitos patrimoniais do autor perduram por setenta anos contados de 1° de janeiro do ano subseqüente ao de seu falecimento, obedecida a ordem sucessória da lei civil. Significa dizer que, muito embora os herdeiros recebam os bens em virtude das regras de sucessão, também aplicáveis aos direitos autorais, não terão qualquer controle prático sobre a publicação e distribuição das obras, haja vista a falta de acesso à conta digital 

Além disso, o acesso a e-mails e contas digitais pelos herdeiros pode revelar-se bastante útil para fornecer informações aos descendentes sobre contas bancárias, assinaturas de serviços, criptomoedas e sociedades em empresas. Negócios que são operados de forma virtual também podem ser prejudicados em caso de negativa de acesso às contas, porquanto os herdeiros não terão como avisar consumidores ou cumprir eventuais prazos e obrigações pendentes.  

Finalmente, há uma preocupação histórica. O acesso às cartas e aos arquivos de políticos, autoridades e pessoas públicas pelos herdeiros, em diversas situações, representou uma importante fonte para a pesquisa de eventos históricos, mas essas cartas, atualmente, estão presentes em contas de e-mail e whats app e serão perdidas se o conteúdo simplesmente for destruído após a morte do respectivo titular.  

Uma das explicações mais comuns para negar aos herdeiros o acesso às contas digitais é a necessidade de proteger a privacidade e a intimidade dos falecidos. Pablo Malheiros Cunha Frota, João Ricardo Brandão Aguirre e Maurício Muriack de Fernandes e Peixoto, a exemplo, assim se manifestaram sobre os PLs n° 4.099 e 4.847, ambos de 2012, que buscaram regular a herança digital:  

a) os dois projetos de lei autorizam que todo o acervo digital do(a) falecido(a) se transmita, com a morte, automaticamente aos herdeiros, a violar frontalmente os direitos fundamentais da liberdade e da privacidade naqueles casos em que o bem digital é uma projeção da privacidade e não houve declaração expressa de vontade ou comportamento concludente do(a) titular do acervo autorizando qualquer pessoa, familiar ou terceiro, a acessar e gerir tais bens digitais; b) qualquer pessoa jurídica (humana ou coletiva), familiar ou terceiro, ou ente despersonalizado que possa ter acesso a tal acervo digital, que interagiram com o(a) falecido(a) também terão as suas privacidades expostas àquele(s) que acessarem o acervo digital do(a) falecido(a), “caso seja conferido a estes o direito de acessar os arquivos digitais do morto,” (BRANCO, 2017, p. 117) sem a mencionada declaração de vontade ou comportamento concludente; c) o respeito às eficácias pessoal, interpessoal e social da vida privada, no caso em tela, explicita a concretização da liberdade positiva de cada e de cada uma decidir os rumos de sua vida, acorde com princípios constitucionais e infraconstitucionais, sem indevidas interferências externas da comunidade, particular ou do Estado, no qual essa liberdade se vincula intersubjetivamente com a comunidade, o Estado e o particular. (MULTEDO, 2017, p. 50-52). d) os projetos de lei, como postos, ao fim e ao cabo, pretendem transmudar o regime de direito de propriedade do direito das coisas para os direitos da personalidade, no qual “o direito de personalidade do de cujus (ou mesmo do ausente) se transmuta em bem patrimonial, de modo que a intimidade ou a imagem do ausente servem como fonte econômico-financeira”, devendo-se afastar a racionalidade dos direitos reais “frente à tutela dos direitos da personalidade”. (FACHIN; 2015, p. 386- 387)1 

 

Ao tratar da mesma questão, não obstante, cortes e legislações de diferentes países chegaram a conclusões distintas 

Quando o marine Justin Ellsworth morreu no Iraque, seu pai decidiu criar um memorial usando os e-mails que ele escreveu e recebeu enquanto estava no Oriente Médio, mas o Yahoo se recusou a liberar as mensagens, com base em alegações concernentes à privacidade e às cláusulas presentes nos termos de uso que proibiam terceiros de terem acesso às contas dos usuários. O Tribunal de Massachusetts, no entanto, determinou ao Yahoo que fornecesse aos familiares um CD contendo as cópias dos e-mails arquivados na conta do falecido, sem, no entanto, autorizar o fornecimento da senha ou o acesso à conta digital. Assim, consignou que não restariam violados nem a política de privacidade do provedor de aplicação nem o direito de propriedade dos herdeiros do soldado falecido2 

Em um caso recente na Alemanha, a Suprema Corte de Justiça reformou um acórdão do Tribunal Regional em Berlim para assegurar aos pais de uma adolescente falecida acesso à conta dela no Facebook, ante a negativa da rede de fornecê-lo voluntariamente com base em alegações concernentes à privacidade da jovem A Corte consignou que pessoas sempre tiveram itens relacionados à própria intimidade e à privacidade de terceiros por ocasião da morte, tais como como cartas, diários e fotos, o que nunca impediu o acesso dos herdeiros a tais bens por ocasião do falecimento do titular. Considerou ainda não haver motivo para tratar correspondências e fotos digitais de maneira distinta da que sempre foram tratados textos e itens pessoais fixados em bens tangíveis, que comumente passam aos sucessores com a morte do autor. Finalmente, afirmou que os pais da adolescente, uma menor de 15 anos, tinham o direito de saber com quem ela havia falado online, em especial ante as circunstâncias que envolviam a morte da jovem. 3. 

Na Inglaterra, o Poder Judiciário, ao menos em dois casos, determinou à Apple que concedesse aos viúvos acesso às fotografias armazenadas na conta digital de seus falecidos cônjuges, de modo a que pudessem obter fotos e vídeos que retratavam momentos de família. 4 

Na Espanha, a Lei de Proteção de Dados Pessoais estabelece que a norma não se aplica aos dados de pessoas falecidas, mas assegura aos herdeiros os direitos de acesso, término e retificação5.  

Na França, o art. 63 (2) da Loi pour une République Numérique estabelece que qualquer pessoa pode definir as diretrizes relativas ao armazenamento, apagamento e comunicação de seus dados pessoais depois de sua morte, considerando nulas quaisquer cláusulas contratuais voltadas a limitar os “poderes testamentários” do usuário sobre os próprios dados6. Determina ainda que, salvo manifestação do usuário em sentido contrário, os herdeiros do falecido podem exercer direitos na medida necessária para:  

  1. Organizar e liquidar os bens do falecido, podendo ver os dados que lhe dizem respeito, a fim de identificar e obter a comunicação de informações úteis para liquidação e partilha do patrimônio.  

  1. Ter acesso a dados e bens digitais relacionados às memórias de família, tais como fotos e vídeos.  

Nos Estados Unidos, vários estados adotaram a lei-modelo elaborada pela Comissão de Uniformização de Leis (Uniform Law Commission - ULC) sobre o acesso aos arquivos digitais em caso de morte ou incapacidade do titular 

O Uniform Fiduciary Access to Digital Assets Act (UFADAA) assegura que, após a passagem do titular, os ativos digitais podem ser administrados pelo herdeiro, sendo permitido o acesso para gerenciar arquivos digitais, domínios na internet, moedas virtuais dentre outros. No entanto, para o acesso às comunicações eletrônicas, tais como e-mails e contas em redes sociais, ao contrário do que previsto nas legislações francesa e espanhola e do que decidido pelas cortes alemãs e britânica, a norma exige o consentimento prévio do titular7 

Como se pode observar, leis e decisões judiciais de diferentes países, como regra geral, impedem que regras contratuais, estabelecidas unilateralmente pelos provedores de aplicação, possam restringir o direito de testar dos usuários sobre o destino dos próprios bens digitais de forma desarrazoada. As normas europeias estabelecem ainda, salvo manifestação em sentido contrário do falecido, o direito de acesso dos herdeiros aos bens presentes em diferentes contas digitais na medida necessária para assegurar a organização e partilha do patrimônio bem como o recebimento dos bens de valor estritamente emocional.  

As regras não destoam do que tradicionalmente ocorria. Antes do surgimento das contas digitais, se pessoas não quisessem que seus descendentes tivessem acesso a itens como diários e fotos íntimas fixadas em bens tangíveis precisavam, ainda em vida, tomar as devidas providências para eliminá-las. Sob o aspecto da privacidade, portanto, não parece haver razão para tratar cartas, textos e fotos digitais com base em regras sucessórias mais restritivas, mesmo porque a privacidade de terceiros nunca impediu o acesso dos herdeiros às obras intelectuais mencionadas. Há ainda aspectos patrimoniais importantes a serem considerados, na medida em que, atualmente, boa parte das informações sobre o patrimônio das pessoas está armazenado em computadores, redes e nuvens.   

Embora grandes plataformas como o Facebook e o Google tenham tomado providências para permitir a seus usuários escolher o que ocorrerá com as próprias contas digitais e o respectivo conteúdo depois do falecimento – o que já resolve uma parte dos problemas – algum tipo de regulamentação legal parece apropriada, mesmo porque a) um grande número de pessoas simplesmente não faz nenhuma opção a respeito; b) cláusulas contratuais podem, eventualmente, implicar restrição ao direito testamentário e c) a pessoa indicada pelo falecido para manejar a conta digital, não necessariamente, será um dos herdeiros.  

Na Câmara dos Deputados, os Projetos de Lei n° 1144 e 2664, ambos de 2021, buscam de alguma forma tratar do que sucederá com os bens e dados digitais após o falecimento do usuário. Na ausência de regulamentação específica, as decisões do Poder Judiciário Brasileiro a respeito da possibilidade de se conferir algum direito de acesso, comunicação ou retificação às contas digitais de pessoas falecidas ainda oscilam.  

Revela-se importante que o ordenamento jurídico nacional regulamente o tema, seja para conferir segurança jurídica e econômica às plataformas e usuários seja, ainda que somente, para conceder dignidade a familiares que encontram dificuldades para resgatar fotos e vídeos que tragam boas lembranças de entes queridos.  

Publicado originalmente no Conjur

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