I – Introdução
O artigo trata do direito ao esquecimento ou, em outras palavras, do direito de alguém exigir a supressão da esfera pública de fatos antigos já publicados a seu respeito ou impedir a publicação de notícias sobre fatos passados. A polêmica envolvendo o direito ao esquecimento, em especial na Internet, ganhou enorme repercussão com o exame pela Corte Europeia de Justiça de um caso envolvendo o Google, um cidadão espanhol e a respectiva agência nacional responsável pela proteção de dados pessoais. Este julgamento será analisado neste trabalho bem como outros proferidos pela Suprema Corte Americana e o Tribunal Constitucional Alemão. Ao final, sustenta-se que o direito ao esquecimento, especialmente em solo brasileiro, depende da definição de parâmetros claros de ponderação, seja mediante lei ou por meio de precedentes judiciais, de modo a impedir a utilização da defesa da privacidade como subterfúgio para prática de censura.
Vivemos em um mundo cercado por tecnologia. Computadores e a Internet revolucionaram a nossa capacidade de acessar e armazenar informação bem como a maneira como nos comunicamos. O desenvolvimento tecnológico recente expandiu de modo formidável a liberdade de expressão, mas também multiplicou os meios de pessoas, empresas e governos rastrearem e guardarem informações pessoais. Esta possibilidade, aliada com programas capazes de organizar, manipular e analisar os dados bem como de estabelecer perfis precisos a partir do respectivo exame, produz novos riscos à privacidade, a qual, em grande parte, pode ser entendida como o direito de alguém controlar e estabelecer limites sobre o fluxo de informações sobre si próprio. De certa maneira, a proteção assegurada a pensamentos, emoções e sentimentos registrados em escritos, fotos e vídeos pode representar uma extensão do direito de estar só.
Com a Internet, contudo, tornou-se cada vez mais difícil para as pessoas restringirem o acesso de terceiros à sua vida privada. Algumas ações indevidas e momentos de indiscrição que, antes naturalmente cairiam no esquecimento, são preservados. Excessos cometidos durante a adolescência podem tornar-se um fardo eterno, pois cada foto, cada vídeo, cada post fica para sempre guardado na nuvem e pode facilmente ser organizado de forma estruturada, mediante um “click” dado em um buscador.
Embora privacidade e liberdade de expressão estejam frequentemente em lados opostos, parece inquestionável que um mínimo de privacidade é algo essencial ao próprio exercício da liberdade. Em algum grau, garantir aos indivíduos certo controle sobre a circulação de informações a seu respeito permite a esta pessoa desenvolver a respectiva personalidade; realizar escolhas e buscar estilos de vida que, embora eventualmente não deem certo, produzirão experiências essenciais ao autoconhecimento e ao aperfeiçoamento da própria identidade. Em certa medida, portanto, assegurar a todos um direito ao esquecimento pode ser libertador.
Por outro lado, conferir aos indivíduos o direito de exigir de terceiros a eliminação de dados que possuam pode produzir incontáveis violações a outros princípios fundamentais tais como a liberdade de expressão e o acesso à informação. Há a possibilidade de perda da cultura e da história. Informações que podem parecer irrelevantes em determinado momento podem adquirir enorme importância em período posterior, sendo impossível precisar quando um determinado dado pode tornar-se essencial para elucidar um fato histórico ou cultural. Não à toa se afirma existir uma intrínseca relação entre cultura, história e memória.
Em segundo lugar, o direito à privacidade pode se tornar uma nova forma de censura. Não se pode esquecer que leis sobre injúria, calúnia e difamação já são usadas de forma massiva e abusiva em todo globo a fim de censurar discursos legitimamente produzidos e publicados. O direito ao esquecimento pode simplesmente implicar a criação de novas oportunidades para suprimir informações de inegável interesse público. Permitir a supressão de dados pode também fazer com que bases de dados importantes e de inegável interesse público se tornem incompletas ou distorcidas. No Brasil, um motivo histórico ainda alimenta este receio, pois vivemos um país reiteradamente marcado pelo cerceamento à liberdade de expressão.
Terceiro, a implantação do direito ao esquecimento possui inegáveis dificuldades práticas. Inicialmente, ela impõe aos provedores de Internet a realização de um labor considerado complexo mesmo para as Cortes Constitucionais, pois eles são colocados na desconfortável tarefa de julgar quando uma informação deve ser considerada “excessiva”, “imprecisa”, “irrelevante” ou “excessiva”, a fim de retirá-la ou mantê-la nos respectivos servidores. A materialização do direito ao esquecimento pela Corte Europeia, pelo menos, impôs aos provedores de Internet a obrigação de julgar milhares de requerimentos que, frequentemente, apresentam casos de difícil solução, mesmo para os magistrados. Ademais, como conciliar o exercício deste direito com o caráter transnacional da Internet e a própria velocidade da informação? Afinal, enquanto um provedor “julga” o requerimento no qual se solicita a retirada de determinado dado, esta informação já pode ter sido copiada para milhares de outros servidores. Ou, enquanto uma informação é eliminada dos sites “.com.br”, pode continuar a ser facilmente acessada com uma simples mudança de endereço1. Seria proporcional impor a estes provedores, sob pena de responsabilidade, o cumprimento de uma obrigação complicada e trabalhosa, cujo resultado é facilmente contornável em virtude da atual estrutura tecnológica?
Ante o quadro, embora o direito ao esquecimento pareça algo de grande importância nas sociedades contemporâneas, seus limites e objetivos devem ser cautelosamente definidos, haja vista a necessidade de se assegurar outros direitos fundamentais. Parâmetros claros de ponderação devem ser determinados bem como se devem considerar as dificuldades práticas de materialização. Do contrário, poder-se-á impor ônus desproporcionais aos provedores de internet sem benefícios palpáveis para a sociedade, com claros retrocessos à liberdade de comunicação.
II – Precedentes no Direito Comparado
Conflitos entre privacidade e liberdade de expressão já proporcionaram precedentes importantes no Brasil e em outros países, que servem de referência ao exame de casos envolvendo o direito ao esquecimento.
II.1 Alemanha
Em 1950, durante a abertura do festival de cinema da Alemanha, Eric Luth, presidente do clube de imprensa de Hamburgo, apelou publicamente para que o povo alemão boicotasse o último filme de Veit Harlan, diretor que havia produzido várias obras antissemitas durante o período nazista e tentava com este filme retomar a sua carreira. Duas companhias de cinema envolvidas com Harlan na produção do filme, com suporte no Código Civil alemão, ingressaram com uma demanda pedindo que Luth fosse proibido de: a) desencorajar distribuidoras e salas de cinema de exibir o último filme feito por Harlan e b) desencorajar o povo alemão de assistir o filme.
As liminares concedidas contra Luth o proibiram de continuar o boicote, mas foram cassadas pelo Tribunal Constitucional alemão. A Corte considerou duas questões essenciais à resolução da controvérsia: um, se direitos fundamentais incidem nas relações privadas; dois, como deve ser feito o balanço entre a liberdade de expressão e outros direitos fundamentais quando estes entram em tensão.
Ao analisar o primeiro problema, o Tribunal Constitucional alemão consignou a necessidade de sempre se levar os direitos fundamentais em consideração, mesmo na resolução de casos a envolver o direito privado. Ao decidir a segunda questão, a Corte destacou a importância da liberdade de expressão em sociedades democráticas, um direito essencial ao exercício de praticamente todos os outros direitos fundamentais. Ressaltou, ainda, a necessidade de se permitir o desenvolvimento de debates polêmicos e incômodos nestas sociedades, não se podendo interpretar outras leis e direitos fundamentais de modo a inibir o debate público, ainda que a outra parte possa vir a ter prejuízos econômicos ou à honra.
O precedente torna-se uma referência para o exame de casos a envolver o direito ao esquecimento, pois, além de assentar a incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas, o tribunal considerou que Veit Harlan não tinha o direito de simplesmente apagar o passado e recomeçar a sua vida profissional como se nada houvesse ocorrido. Conforme consignou, a campanha de Luth era realizada de forma coerente com suas convicções políticas fundadas na imoralidade de atos cometidos por diversos alemães durante o período nazista, ainda que muitos deles não houvessem sido formalmente condenados. Segundo a Corte, o debate promovido por Luth possuía inegável interesse público. Quanto aos direitos de Harlan a reintegrar-se à sociedade, recomeçar a carreira ou manter a própria reputação, estes poderiam ser defendidos mediante o exercício do direito de resposta.
Também na Alemanha outro importante julgamento que pode servir de referência é o caso Lebach. Na década de 1960, um membro de um grupo extremista alemão foi condenado em virtude do envolvimento no assassinato de soldados que guardavam um depósito de munições na cidade de Lebach. Já ao final do cumprimento da pena, uma emissora de TV resolveu produzir um documentário sobre o caso, no qual os nomes dos integrantes eram frequentemente citados bem como eram apresentadas fotos. A justiça comum indeferiu os pedidos destinados a proibir a transmissão, consignando que os integrantes eram personagens importantes da história recente da Alemanha. Em 1973, contudo, o Tribunal Constitucional alemão deferiu a liminar. Entendeu que o impacto provocado pela divulgação do filme dificultaria sobremaneira a ressocialização – um direito assegurado pela lei alemã – bem como implicaria óbice ao direito da personalidade. Conforme anotou, a cobertura da mídia no período em que o crime é cometido é algo legítimo, mas que perde força e cede espaço à proteção dos direitos da personalidade com o passar do tempo. O julgamento é tido como um marco para o direito à privacidade na Alemanha e frequentemente é citado como um dos precedentes que asseguraria o direito ao esquecimento. Na prática, afinal, garantiu-se aos participantes de um crime certo controle sobre a divulgação de informações pessoais após o decurso de período razoável.
Não se pode esquecer, contudo, que as teses assentadas pelo Tribunal Constitucional Alemão em 1973 foram limitadas em virtude de julgamentos posteriores. Em 1999, no caso conhecido como Lebach II, outro participante do mesmo crime buscou impedir a divulgação de uma nova longa metragem produzida pela estação de TV SAT1 a respeito do caso. O Tribunal Constitucional, contudo, decidiu em favor da emissora, pois o filme não revelava fotos nem os nomes dos envolvidos. A impossibilidade de identificação dos condenados no segundo documentário foi considerada essencial para que a Corte decidisse em favor da liberdade de expressão.
Em Seldmayr, por sua vez, o Tribunal Constitucional alemão parece ter caminhado um pouco mais no sentido de melhor delimitar o âmbito de aplicação do precedente obtido com o caso Lebach. Em 1990, dois irmãos mataram um famoso ator alemão, Walter Seldmayr, sendo condenados à prisão perpétua. O caso recebeu extensa cobertura da mídia, ganhando enorme repercussão. Em liberdade condicional, no ano de 2007, os irmãos formalizaram diversas ações contra websites, na Alemanha e no exterior, requerendo a exclusão de conteúdo no qual seus nomes apareciam relacionados à prática do crime. O fundamento da demanda era exatamente o precedente de 1973, o qual garantia a privacidade dos condenados por infrações penais e o direito à ressocialização após o cumprimento da pena.
O Tribunal Constitucional, contudo, não assegurou aos autores a exclusão de conteúdo já publicado na rede. Inicialmente, destacou que indivíduos somente podem impedir a publicação de informações verdadeiras que lhe causem prejuízo se o dano à reputação for desproporcional quando comparado ao interesse público na divulgação da notícia. Anotou serem legítimas as reportagens que identifiquem os agentes da prática de um crime, sendo estes eventos parte da história contemporânea. Ressaltou que crimes graves afetam a sociedade de maneira particular, autorizando notícias detalhadas sobre a maneira como foram realizados, os motivos e as pessoas envolvidas. Segundo a Corte, embora seja um importante fator a ser considerado, o simples passar do tempo não assegura ao condenado o direito de suprimir da Internet conteúdo de interesse público já divulgado, competindo aos tribunais considerar o grau de interferência aos interesses do envolvido nos casos concretos. Assim, um novo documentário sobre a matéria próximo ao término da pena certamente causaria um impacto maior à reputação do condenado do que uma notícia impressa. Por sua vez, a publicação de novas notícias reavivando o fato, no momento da concessão da liberdade condicional, igualmente, deveria ser considerada desproporcional, pois o tempo passou, o interesse público de a sociedade ser informada sobre o julgamento foi atendido, os condenados cumpriram a pena e possuem direito à ressocialização.
Não obstante, conforme o Tribunal alemão, o direito à personalidade não garante aos condenados a faculdade de exigir a supressão da Internet de notícias antigas, publicadas à época dos fatos e armazenadas nos servidores dos provedores de conteúdo. A Corte deixou claro que o fácil acesso a notícias pretéritas mediante buscadores, ainda que prejudiciais à honra e à reputação dos envolvidos, não constitui motivo suficiente para apagar links ou dados históricos. Segundo o pronunciamento, a manutenção de reportagens nos bancos de dados dos provedores é legal, desde que identificadas como antigas e não relacionadas a reportagens atuais, mediante a criação de novos links. Tais precauções, consoante o Tribunal, reduzem significativamente os potenciais danos a direitos da personalidade e geram um adequado equilíbrio entre liberdade de expressão e privacidade.
III.2. Estados Unidos
William James Sids ( 1898 -1944) talvez tenha sido o prodígio mais famoso do início do século XX nos Estados Unidos. Era capaz de ler o New York Times com dezoito meses e aos três anos já havia aprendido a datilografar. Aprendeu latim, grego e diversas outras línguas em tenra idade e, em 1909, com onze anos, foi admitido em Harvard. O pai de William era físico e pioneiro no estudo da psicologia. Em 1911, publicou um livro sobre suas próprias teorias educacionais com severas críticas ao sistema de ensino americano. Resolveu aplica-las ao próprio filho, divulgando os feitos do prodígio na obra publicada, o que conferiu ainda mais popularidade ao garoto. No entanto, o esperado futuro de sucesso para Sids não se concretizou. Em 1916, ele abandonou a faculdade de direito aos dezoito anos e teve uma vida profissional relativamente comum.
Entre o abandono da faculdade e 1937, Sids viveu de forma relativamente anônima, conseguindo se afastar dos holofotes que o acompanharam durante a infância e adolescência. Neste ano, contudo, o New Yorker publicou um artigo sobre ele dentro de um espaço da revista intitulado “Onde eles estão agora?”. Sid foi descrito com alguém que, apesar da infância brilhante, tornou-se um profissional medíocre, fazendo de tudo para escapar das responsabilidades impostas pela vida adulta após ter vivenciado as privações de uma infância extremamente severa.
Sid não contestou a veracidade das informações, mas ajuizou uma ação contra a revista na qual alegou violação ao seu direito à privacidade. A Suprema Corte Americana rejeitou o pedido2. Embora tenha reconhecido que Sid não era mais uma figura pública, disse não estar confortável em impedir a imprensa de investigar aspectos privados da vida de uma pessoa que, durante algum momento da vida, tenha atingido notoriedade ou merecido a confiança e admiração da população em geral.
Consoante anotou, muito embora Sid tenha levado uma vida adulta discreta, continuava a despertar o interesse digno de notícia permitir à população saber o que ocorreu com o menino prodígio para que possa, por si mesmo, avaliar se as promessas oferecidas pelo método educacional do pai funcionaram ou não. Anotou:
“Nós não opinamos se o interesse público na publicação da notícia sempre irá constituir defesa suficiente contra a alegação de ofensa à privacidade. As revelações podem ser excessivamente intimas e injustificáveis sob a perspectiva da vítima bem como podem constituir um ultraje às noções de decência da comunidade. Mas quando focadas em pessoas públicas, afirmações verdadeiras sobre o estilo, hábitos, discursos e outros aspectos ordinários da personalidade usualmente não ultrapassaram a linha do razoável. Infelizmente ou não, os infortúnios e as fragilidades de nossos vizinhos e das pessoas públicas constituem tema sujeito à considerável interesse e debate pela população. E quando esses são os costumes da comunidade, é imprudente para um tribunal barrar este tipo de matéria nos jornais, livros, revistas do dia a dia.”( traduçao livre)
O acórdão indica como a Suprema Corte Americana segue caminho distinto de outras democracias quando pondera conflitos entre a liberdade de expressão e outros direitos fundamentais, conferindo manifesta preferência ao primeiro. No caso, não teve relevância o fato de Sid ter se tornado uma figura pública de forma involuntária, sendo jogado aos holofotes ainda criança pelo pai, quando não tinha como fazer as próprias escolhas. No momento em que pôde decidir, vale dizer, Sid escolheu seguir caminho diametralmente oposto. O precedente sugere que, para o direito americano, se alguém, em algum momento, torna-se uma figura pública, será sempre uma figura pública, parecendo não haver abertura para se falar em direito ao esquecimento.
III.3. Google vs. Mario Costeja González
Sobre o direito ao esquecimento, nenhum julgamento produziu tanta repercussão quanto o recentemente decidido pela Corte de Justiça da União Europeia, no caso Google Spain SL, Google Inc. vs Agencia Española de Protección de Datos, Mario Costeja González, o qual envolveu especificamente o uso da Internet.
Em 1998, o jornal espanhol La Vanguardia publicou um anúncio no qual noticiava que um imóvel pertencente ao advogado Mario Costeja Gozáles iria a leilão para pagamento de dívidas. Com o passar do tempo, Gonzáles quitou os débitos, mas a informação continuava em destaque todas as vezes que alguém buscava informações sobre ele no Google. Em 2010, González pediu à Agência Espanhola de Proteção de Dados, representante local responsável pelo cumprimento das diretivas europeias sobre proteção de dados, que determinasse ao jornal a exclusão do anúncio do site e ao Google a supressão dos respectivos links. A agência negou o pedido em relação ao jornal, mas deferiu o requerimento em relação ao Google.
A Corte de Justiça negou os recursos interpostos pela Google e Google-Espanha, mantendo a decisão. Entendeu que todos os indivíduos submetidos à jurisdição da Corte têm o direito à exclusão de links que remetam a conteúdos inadequados, imprecisos, excessivos, irrelevantes ou que perderam a relevância. Ao mesmo tempo, porém, consignou não ser este direito assegurado quando os atalhos estiverem relacionados a conteúdo de interesse público.
III – Situação no Brasil
III.1 O aspecto procedimental do direito ao esquecimento
O direito ao esquecimento pode ser examinado tanto por uma perspectiva substantiva quanto por uma perspectiva procedimental. Embora o principal objetivo deste artigo seja examiná-lo sob o primeiro aspecto, torna-se importante fazer uma breve referência à perspectiva procedimental, em especial ante a divergência atual existente sobre o tema entre o acórdão prolatado pela Corte Europeia de Justiça no caso Google vs. Mario Costeja González e os acórdãos do Superior Tribunal de Justiça.
Contra quem deve ser proposta uma ação voltada a assegurar o direito ao esquecimento?
Para Corte Europeia de Justiça, a ação deve ser ajuizada contra o buscador a fim de desindexá-la (apagar o link), e não contra o site no qual ela foi publicada. Na Europa, portanto, entende-se haver uma autonomia entre o conteúdo original e o link, mantendo o primeiro intacto, mas determinando a remoção do segundo. Determina-se a restrição dos resultados expostos a partir da busca com o uso do nome de Mario Costeja González bem como se faz uma clara separação entre os conceitos de disponibilidade e de acessibilidade da informação. Para o Tribunal Europeu, há autonomia entre estes conceitos porque o Google também exerce controle sobre os dados ao organizá-los de forma estruturada e indexada, conseguindo desenvolver perfis com riqueza de detalhes e velocidade impossíveis de serem alcançadas sem o seu uso. O buscador, assim, determina os meios e os fins do processamento dos dados, agregando enorme valor à informação disponibilizada por terceiros. Com o desenvolvimento da Internet, assim, o indexador acaba por ser tão importante quanto a própria informação.
Em suma, é possível haver violação à privacidade em virtude do amplo monitoramento e catalogação de atos que, normalmente, são feitos pelas pessoas de forma anônima e desconectada. Alguns dados, vistos de forma singular e separada, podem não representar qualquer violação ao direito da privacidade. Não obstante, a natureza e o grau da ofensa podem ser radicalmente alterados quando estes mesmos dados são colocados instantaneamente de forma combinada.
A ofensa da privacidade para o Tribunal Europeu é consequência da indexação de forma instantânea e altamente organizada que é proporcionada pela Internet, o que implica a criação de uma “biografia de buscador”. O Google, portanto, pode ser processado, mesmo que não tenha publicado a notícia, porque ele faz o tratamento de dados pessoais ao coletá-los, processá-los, classificá-los, indexá-los, distribuí-los, e facilitar-lhes o acesso, amplificando a divulgação e conferindo uma característica de atualidade a um fato que, nas palavras do tribunal europeu, já pode estar impreciso, já pode ser irrelevante, ou já pode causar danos excessivos àquele que foi tema da notícia quando comparado aos benefícios proporcionados ao interesse público.
Não obstante, apagar a própria notícia do site no qual foi publicada constituiria uma forma de censura para o tribunal europeu, pois não houve nenhuma ilicitude à época da publicação. Retirar a reportagem do próprio site seria o equivalente a queimar o jornal impresso, que, mesmo nos tempos de mundo analógico, sempre pôde ser acessado em bibliotecas e em outros diferentes tipos de arquivos públicos.
Para o Superior Tribunal de Justiça, ao contrário, o buscador não poderia ser processado em ações relacionadas ao direito ao esquecimento. Desde o caso Xuxa, ação na qual a apresentadora entrou contra o Google pedindo a retirada de links que remetessem a conteúdos referentes à prática de pedofilia, o STJ entende que o buscador não é obrigado a eliminar os resultados derivados da busca de determinado termo ou expressão, já que os provedores de pesquisa realizam buscas dentro de universo virtual, cujo acesso é público e irrestrito.3 A exemplo de que a tese se mantém, eis acórdão do Superior Tribunal de Justiça:
3. Os provedores de pesquisa virtual realizam suas buscas dentro de um universo virtual, cujo acesso é público e irrestrito, ou seja, seu papel se restringe à identificação de páginas na web onde determinado dado ou informação, ainda que ilícito, estão sendo livremente veiculados. Dessa forma, ainda que seus mecanismos de busca facilitem o acesso e a consequente divulgação de páginas cujo conteúdo seja potencialmente ilegal, fato é que essas páginas são públicas e compõem a rede mundial de computadores e, por isso, aparecem no resultado dos sites de pesquisa.
4. Os provedores de pesquisa virtual não podem ser obrigados a eliminar do seu sistema os resultados derivados da busca de determinado termo ou expressão, tampouco os resultados que apontem para uma foto ou texto específico, independentemente da indicação do URL da página onde este estiver inserido.
[...]
6. Preenchidos os requisitos indispensáveis à exclusão, da web, de uma determinada página virtual, sob a alegação de veicular conteúdo ilícito ou ofensivo - notadamente a identificação do URL dessa página - a vítima carecerá de interesse de agir contra o provedor de pesquisa, por absoluta falta de utilidade da jurisdição. Se a vítima identificou, via URL, o autor do ato ilícito, não tem motivo para demandar contra aquele que apenas facilita o acesso a esse ato que, até então, se encontra publicamente disponível na rede para divulgação.4
Fato é que, após o pronunciamento da Corte Europeia de Justiça, o Google disponibilizou na Europa um formulário mediante o qual os usuários podem solicitar a retirada de links que remetam a dados inadequados, irrelevantes, ou excessivos, tendo em vista às finalidades pelas quais eles foram processados. Um ano após a decisão, 60% dos requerimentos haviam sido rejeitados5.
No Brasil, ao revés, os casos envolvendo o direito ao esquecimento na Internet, considerada a jurisprudência do STJ, têm sido propostos contra os próprios sites de notícias, a exemplo de recente demanda formalizada contra a Veja6. A discrepância entre o que ocorre na Europa e aqui não passou despercebida pelo ministro Roberto Barroso. Ao dar uma liminar favorável à editora Abril, ele destacou que retirar a própria matéria da Internet constitui forma de censura. 7
É verdade que, em recente acórdão prolatado pela Terceira Turma do STJ, o provedor de pesquisa foi responsabilizado por não ter retirado um link de seu indexador, o qual remetia o usuário a conteúdo inadequado. A responsabilização, contudo, não ocorreu propriamente em razão do reconhecimento de que o buscador deve assegurar o direito ao esquecimento, mas pelo fato de no caso concreto ter sido provada uma falha na prestação do serviço de pesquisa. Eis o resumo da ementa:
[...]
4. Os provedores de pesquisa podem ser excepcionalmente obrigados a eliminar de seu banco de dados resultados incorretos ou inadequados, especialmente quando inexistente relação de pertinência entre o conteúdo do resultado e o critério pesquisado.
5. A ausência de congruência entre o resultado atual e os termos pesquisados, ainda que decorrentes da posterior alteração do conteúdo original publicado pela página, configuram falha na prestação do serviço de busca, que deve ser corrigida nos termos do art. 20 do CDC, por frustrarem as legítimas expectativas dos consumidores.8
No Brasil, por enquanto, somente haverá a retirada do link caso haja uma falha de pertinência entre este e o conteúdo para o qual o usuário é encaminhado. A discrepância, portanto, continua. Ao passo que na Europa o direito ao esquecimento leva a uma desindexação do conteúdo do buscador, mantendo-se a matéria original, por aqui, as ações envolvendo o direito ao esquecimento na Internet têm sido movidas contra o próprio site no qual publicada a notícia.
A diferença impacta no próprio conceito de direito ao esquecimento e altera a balança entre acesso à informação e liberdade de expressão, de um lado, e proteção à privacidade do outro. Lá, o direito ao esquecimento se restringe a um direito de desindexação de um link na internet. O risco de censura, embora sempre presente, é menor, pois a matéria continua na web e poderá ser encontrada a partir de pesquisas realizadas com outras palavras-chave. O que se proíbe é a obtenção do resultado a partir de pesquisas realizadas com o nome da pessoa, de modo a protege-la da curiosidade desprovida de interesse público.
No Brasil, o conceito de direito ao esquecimento acaba por se tornar muito mais amplo, pois tem sido usado contra os próprios sites nos quais publicadas as notícias. Os riscos de censura e supressão da memória e da história tornam-se maiores, pois o que se busca é a própria retirada da reportagem publicada da web, o que obstaria o encontro da notícia, independentemente das palavras-chave utilizadas.
Considerada a jurisprudência atual do STJ, deve-se sempre ter em mente a diferença entre a concepção europeia e a brasileira.
III.2 O aspecto substantivo do direito ao esquecimento
O Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal promove, desde 2002, jornadas anuais sobre direito civil, com a finalidade de debater temas relacionados à interpretação da legislação no país. Muito embora sem qualquer eficácia normativa, tais enunciados são frequentemente citados pela doutrina e acabam influenciando julgamentos em diferentes tribunais nacionais. Em 2013, durante a VI Jornada de direito civil, o CJF aprovou o Enunciado n° 531, com o seguinte teor:
ENUNCIADO 531 – A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento.
ARTIGO: 11 do Código Civil
JUSTIFICATIVA:
Os danos provocados pelas novas tecnologias de informação vêm-se acumulando nos dias atuais. O direito ao esquecimento tem sua origem histórica no campo das condenações criminais. Surge como parcela importante do direito do ex-detento à ressocialização. Não atribui a ninguém o direito de apagar fatos ou reescrever a própria história, mas apenas assegura a possibilidade de discutir o uso que é dado aos fatos pretéritos, mais especificamente o modo e a finalidade com que são lembrados.
Pouco tempo depois, o Superior Tribunal de Justiça debateu sobre o direito ao esquecimento em dois recursos especiais, nos quais a Rede Globo foi processada em virtude da exibição de episódios do programa “Linha Direta Justiça”, dedicado à produção de enquetes-reportagens a respeito de crimes hediondos de grande repercussão nacional. No Resp n° 1.335.153/RJ, cujo objeto foi a transmissão de um episódio sobre o assassinato de Aida Curi em 1958, o direito ao esquecimento foi requerido pela família da vítima9. No Resp n° 1.334.097, no qual se cuidou de episódio sobre a Chacina da Candelária, os danos morais foram pleiteados por pessoa incialmente acusada da prática do crime, mas posteriormente absolvida. Analisemos os dois julgamentos com mais vagar:
III.2.1. O caso Aida Curi
Ainda Curi, filha de imigrantes sírios, dezenove anos, foi achada morta na Avenida Atlântica, no bairro de Copacabana, na noite de 14 de julho de 1958. As investigações concluíram que a jovem havia, na verdade, sido jogada do 12° andar de um edifício próximo ao local. O crime tornou-se nacionalmente conhecido, tendo em vista as dúvidas sobre o caso, o tumulto ocorrido no processo criminal subsequente e a intensa cobertura da mídia à época, sendo objeto de inúmeros livros e reportagens.
Em 2004, os irmãos de Ainda Curi processaram a Rede Globo por danos morais e de imagem, tendo em vista a exibição de um episódio do programa Linha Direta-Justiça sobre o caso. Consoante alegaram, a transmissão do programa reabriu feridas que haviam sido sepultadas com o passar do tempo e implicou exploração indevida da imagem da irmã para fins comerciais.
O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro manteve a sentença que julgara o pedido improcedente. Entendeu que o esquecimento não é o caminho salvador para tudo, sendo frequentemente necessário reviver o passado para que as novas gerações fiquem alertas e repensem alguns procedimentos de conduta do presente.
O Superior Tribunal de Justiça, por maioria, negou provimento ao recurso especial. Anotou haver inegável interesse público no registro de um crime, mas que a historicidade deste fato não pode servir de pretexto para as pessoas nele envolvidas sejam retratadas indefinidamente no tempo, não devendo constituir óbice instransponível à prevalência dos direitos da personalidade. Ressaltou ser a passagem do tempo algo importantíssimo para Direito, sendo fundamento de diversos institutos voltados à estabilização das relações sociais, tais como a prescrição, a decadência e a reabilitação. Destacou ser possível considerar o transcorrer do tempo como causa de ilicitude, como na manutenção do nome de alguém nos bancos de proteção ao crédito por tempo superior ao permitido em lei. Lembrou, ainda, ser consolidada a jurisprudência do STJ, no sentido de reconhecer o direito ao esquecimento dos condenados que cumpriram pena ou foram absolvidos.
No caso concreto, contudo, entendeu que era impossível contar a narrativa sobre um crime de grande repercussão nacional sem falar sobre a vítima, que pela torpeza do destino, tornou-se elemento indissociável do delito. Como afirmou o relator, seria como “tentar retratar o caso Doroty Stang, sem Doroty Stang; o caso Vladimir Herzog, sem Vladimir Herzog, e outros tantos que permearam a história recente e passada do cenário criminal brasileiro”. Afastou ainda o uso da imagem para fins comerciais, nos termos previstos na Súmula n° 403 do STJ10, negando o direito à indenização.
Tal julgamento ganhou ainda maior relevância, tendo em vista o reconhecimento pelo Supremo da repercussão geral da matéria nele analisada, no ARE n° 833.248. O acórdão foi sintetizado na seguinte ementa:
Direito constitucional. Veiculação de programa televisivo que aborda crime ocorrido há várias décadas. Ação indenizatória proposta por familiares da vítima. Alegados danos morais. Direito ao esquecimento. Debate acerca da harmonização dos princípios constitucionais da liberdade de expressão e do direito à informação com aqueles que protegem a dignidade da pessoa humana e a inviolabilidade da honra e da intimidade. Presença de repercussão geral. 11
III.2.2 Chacina da Candelária
Na noite de 23 de julho de 1993, um grupo de homens abriu fogo contra 50 crianças e adolescentes que dormiam nas proximidades da Igreja da Candelária, no Rio de Janeiro, matando oito pessoas, sendo seis delas menores de 18 anos. O crime causou repercussão internacional, gerando protestos de diversos grupos ligados aos direitos humanos. Com suporte no depoimento dos sobreviventes, nove homens foram indiciados como responsáveis pelo massacre.
Um deles, o Sr. Jurandir Gomes de França, foi absolvido de forma unânime pelo Tribunal do Júri, após mais de três anos de prisão preventiva. Em 2006, durante a produção do programa “Linha Direta Justiça”, o Sr. Jurandir recusou-se a dar qualquer entrevista, além de ter manifestado expressamente o desinteresse na exibição de sua imagem. Não obstante, foi retratado no episódio transmitido como um dos envolvidos no evento.
Ao julgar o recurso especial, o STJ, igualmente, destacou que um crime é um registro de um acontecimento político, de costumes sociais ou até mesmo de fatos cotidianos, constituindo um retrato de determinado momento e revelando as características de um povo na época retratada. Considerado o quadro, anotou que a recordação de crimes passados pode significar uma análise de como a sociedade e o próprio ser humano evoluem naquilo pertinente aos valores éticos bem como pode propiciar um exame da resposta oferecida pelo Estado ao fato ocorrido. Concluiu haver legítimo interesse público na cobertura dada à resposta estatal ao fenômeno criminal.
Na hipótese, contudo, o STJ chegou à conclusão oposta a do caso anteriormente relatado, mantendo a condenação da emissora ao pagamento de R$ 50.000,00 por danos morais. Conforme consignou, ao contrário do caso Ainda Curi, era perfeitamente possível a produção do episódio sem a divulgação do nome e da imagem do autor, o que permitiria uma adequada ponderação de valores entre liberdade de imprensa, de um lado, e honra e privacidade, de outro. Anotou ainda que, embora as instâncias ordinárias tenham reconhecido ser a reportagem fidedigna com a realidade, a receptividade do brasileiro a noticiários desse jaez reacende a desconfiança geral sobre índole do autor, o qual não teve reforçada sua imagem de absolvido com o episódio, e sim a de indiciado.
Os dois julgamentos deixam incontroverso, ao menos para o Superior Tribunal de Justiça, que o direito ao esquecimento é sindicável no Brasil, ainda que as discussões a respeito do tema, como bem observado pelo próprio Tribunal, estejam longe de se resolverem com estas decisões. A atribuição de repercussão geral à matéria pelo Supremo, por sua vez, parece indicar que o país seguirá linha diversa dos Estados Unidos no assunto, tendendo-se a aproximar-se mais da jurisprudência europeia.
Revela-se indispensável, portanto, traçar adequados parâmetros de ponderação, sob pena de manifesto prejuízo à liberdade de expressão e de imprensa.
IV. Parâmetros de ponderação. O que podemos aprender com as decisões judiciais posteriores à inconstitucionalidade da Lei de Imprensa?
A declaração de inconstitucionalidade da Lei de Imprensa pelo Supremo foi objeto de intensa celebração pela mídia nacional. Jornais, revistas blogs e sites comemoraram o momento como um marco histórico: um evento a estampar a vitória da liberdade de expressão e o fim de tenebrosos tempos de censura.
Apesar do simbolismo representado pela procedência da ADPF n° 13012, alguns acórdãos proferidos após o julgamento indicam não ser possível afirmar ter havido significativa melhora para o exercício da atividade jornalística no país. Ao invés, algumas decisões de instâncias inferiores continuam a impor censura à veiculação de material divulgado na imprensa nacional, retirando-o de circulação, determinando alterações de conteúdo ou impondo pesadas condenações cíveis em hipóteses que, segundo o Supremo no julgamento da ADPF, são manifestamente constitucionais. Na verdade, alguns casos a seguir expostos revelam que, em certos aspectos, a situação do jornalista para o desempenho de atividade até piorou.
O primeiro exemplo a chamar atenção envolve o jornalista Ricardo Noblat, processado porque relatou fatos ocorridos em uma sessão pública de julgamento no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Movida a demanda por um dos desembargadores que estava na sessão, o jornalista foi condenado em primeira e segunda instâncias, vindo a ser absolvido apenas no STJ13. É o típico caso no qual a Lei de Imprensa traria bases claras para a manifesta improcedência da ação, já que, segundo o artigo 27, inciso VI, da lei invalidada, não constituiria exercício abusivo da liberdade de imprensa, “a reprodução integral, parcial ou abreviada, a notícia, crônica ou resenha dos debates escritos ou orais, perante juízes e tribunais, bem como a divulgação de despachos e sentenças e de tudo quanto for ordenado ou comunicado por autoridades judiciais”.
Na ausência de lei e de parâmetros claros de ponderação, viram-se os ministros do STJ obrigados a desempenhar considerável esforço argumentativo para afastar a alegação de que o exercício da liberdade de expressão não havia transbordado os limites do razoável. Ainda que o jornalista tenha sido absolvido pela Corte Superior, o caso revela como é altamente inseguro e incômodo presenciar julgadores avaliando os adjetivos e advérbios utilizados por um jornalista na notícia publicada, como se eventuais críticas feitas a autoridades públicas fundadas em fatos ocorridos em sessão pública não fossem, desde logo, manifestamente constitucionais14. O caso concreto parece indicar que o jornalista, talvez, tivesse parâmetros mais seguros para o desempenho da atividade e a formulação da defesa com a lei invalidada em vigor.
Por sua vez, declarada a inconstitucionalidade da norma em 2009, os tribunais do país passaram aplicar as regras previstas no Código Penal às hipóteses na qual a eventual vítima alega a prática de crimes contra a honra. Eis acórdão do STJ sobre o tema:
[...]
1. Não recepcionada a Lei de Imprensa pela nova ordem Constitucional (ADPF 130/DF), quanto aos crimes contra a honra, aplicam-se, em princípio, as normas da legislação comum, quais sejam, art. 138 e seguintes do Código Penal e art. 69 e seguintes do Código de Processo Penal.15
Considerado o quadro, outra piora a ser observada em relação à situação do jornalista refere-se ao prazo de decadência para a propositura de ações penais. Se a lei de imprensa estivesse em vigor, o prazo decadencial para a formalização da demanda contra o autor de uma notícia seria de três meses16. Segundo atual entendimento da jurisprudência, o prazo dobra, passando para seis. Na prática, a declaração de inconstitucionalidade da lei de imprensa implicou maior gravame ao desempenho da atividade, muito embora a procedência da ADPF n° 130 tenha ocorrido para conferir maior proteção à liberdade de informação e de opinião. 17
Em outras situações, apesar da declaração de inconstitucionalidade da lei de imprensa, nada mudou. Os tribunais de todo país, por exemplo, continuam a aplicar os incisos I e II do artigo 141 do Código Penal, os quais preveem como causa de aumento de pena a prática de crime contra a honra de funcionário público.
Não obstante, os incisos I e II do mencionado dispositivo possuem idêntico conteúdo normativo do artigo 23, incisos I e II, da Lei de imprensa, o qual foi declarado inconstitucional. Parece também incompatível com os fundamentos do que decidido na ADPF a existência de leis que, em virtude da suposta necessidade da especial preservação da reputação de servidores públicos, imponham sanções penais maiores a autores de delito contra a honra. Como destacado pelo ministro Marco Aurélio na Ação Penal n° 891, tais regras, além de incompatíveis com o entendimento do Supremo no sentido de que autoridades públicas devem gozar de proteção à privacidade e à honra menor do que os demais cidadãos, colocam o servidor em posição privilegiada em relação ao povo, conferindo ao primeiro maior imunidade e subtraindo do último as liberdades de expressão e de crítica que lhe são constitucionalmente outorgadas. 18
Por fim, ainda são recorrentes as decisões judiciais em todo o país que determinam a retirada de material jornalístico de circulação, apesar de na ADPF 130, o Supremo Tribunal Federal ter proibido a censura prévia de publicações com este conteúdo.19
A finalidade deste tópico não é a defesa da lei de imprensa, a qual possuía diversos artigos manifestamente direcionados à prática da censura. Contudo, a mera declaração de inconstitucionalidade da norma não implicou um regime jurídico mais seguro para a configuração de uma mídia não sujeita à censura se os tribunais inferiores não forem obrigados a observar os parâmetros de ponderação estabelecidos pelo Supremo.
Sem qualquer lei sobre o tema, os conflitos envolvendo a liberdade de expressão e outros direitos fundamentais passaram a ser regulados pela incidência direta dos princípios constitucionais. Tal situação, como deixa antever os exemplos citados, produz problemas relevantes. Diferentes tribunais do país certamente entendem de maneira diversa quais são os limites da liberdade de expressão e de imprensa, podendo aplicar de maneira distinta o texto constitucional. Torna-se, assim, essencial o respeito aos critérios de ponderação fixados pelo Supremo Tribunal Federal na solução de conflitos, sob pena de grave insegurança jurídica e econômica para o desenvolvimento de um jornalismo livre, robusto e não sujeito à autocensura por receio de responsabilização civil ou criminal. Em um sistema amparado em princípios, afinal, são o eventual déficit de motivação das decisões jurídicas e a falta de atenção aos precedentes dois dos maiores inimigos do adequado exercício dos direitos fundamentais.
Entretanto, além de os motivos dos acórdãos proferidos pelo Supremo, segundo jurisprudência da própria Corte20, não serem determinantes, há uma enorme dificuldade de se conhecer atualmente a própria ratio decidendi dos julgamentos, pois cada ministro profere um voto distinto, podendo chegar à idêntica conclusão por razões completamente diversas.
Não é evidente, assim, que a ausência de leis voltadas a ponderar eventuais conflitos entre o exercício da liberdade de expressão e outros direitos fundamentais, tais como honra e privacidade, traga sempre benefícios. Substituir parâmetros razoáveis estabelecidos em norma por outros a serem estipulados por milhares de juízes espalhados pelo país pode, como visto, gerar enorme insegurança jurídica e prejudicar a própria proteção da liberdade que se almejava assegurar.
V. Direito ao esquecimento: a definição de adequados parâmetros de ponderação.
Considerado o tópico anterior, é pertinente começar a última etapa deste artigo, ressaltando o fato de diversos países democráticos do mundo possuírem leis destinadas a regular a proteção de informações pessoais, o que exige do legislador o exercício de ponderação entre princípios, como o da privacidade, o da liberdade de expressão e o de acesso à informação. Na Europa, a principal norma sobre o tema é a Diretiva 95/46, a qual é objeto de proposta recente destinada à realização de uma ampla reforma. Nos Estados Unidos, embora não exista legislação voltada a tratar da matéria de forma sistematizada, há um conjunto de leis federais e resoluções expedidas por agências reguladoras que abordam diferentes questões pertinentes ao assunto.21
No Brasil, embora ainda não haja lei sobre a proteção de dados pessoais, há projetos em tramitação tanto na Câmara como no Senado, os quais foram previamente submetidos à consulta pública pelo site do Ministério da Justiça, num procedimento bastante parecido ao qual esteve sujeito o anteprojeto sobre o Marco Civil da Internet. Aliás, na ausência de lei específica, os artigos 19 e 21 do Marco Civil fornecem alguns parâmetros relevantes a serem observados nos casos a envolver conflitos entre liberdade de expressão e privacidade, os quais serão analisados posteriormente.
V.1 O passar do tempo
Mesmo a divulgação de fatos verdadeiros pode, em alguns casos constituir violação ao direito à privacidade. A publicação de vídeos íntimos de um casal por um dos parceiros após o fim de um relacionamento, de imagens de crianças e adolescentes em diversas situações, de dados obtidos a partir de interceptações telefônicas clandestinas ou com violação de domicílio revela-se, em princípio, ilegítima. A grande diferença entre estas situações e casos envolvendo o direito ao esquecimento é que, nos últimos, não há nada a apontar qualquer ilegitimidade quando as informações foram inicialmente coletadas e divulgadas. A balança a favor da privacidade começa a pesar somente com o passar do tempo.
Quanto mais antiga a informação, maior a chance de a proteção do interesse privado superar o público. O valor da informação não é estanque. Ele muda com o passar dos anos. Dados, como algo representativo de parte da realidade, não serão precisos ou relevantes para sempre. Ao invés, a tendência é que eles percam relevância, precisão e contexto com o decorrer do tempo até que, em diversas ocasiões, expire seu valor ou, ao menos, mudem as razões pelos quais eles continuam a possuir importância. Informações atuais, que possuem alta importância para a tomada de decisões de eleitores, empresas e políticos, tendem, com o decorrer do tempo, a passar a ter valor histórico, estatístico, cultural, entre outros, não contribuindo, como antes, para a realização de escolhas presentes. Isto ocorre nas mais diversas áreas, que vão desde estudos científicos, previsões sobre a bolsa, análises políticas e registros sobre taxas de criminalidade.
Segundo os defensores do direito ao esquecimento, assim como ocorre em outros campos, informações pessoais antigas podem deixar de representar um indivíduo e se tornarem descontextualizadas, passando simplesmente a contribuir para limitar, de forma desproporcional, suas oportunidades presentes e futuras. Informações imprecisas, afinal, possuem pouco valor tanto para quem é objeto delas como para quem as recebe, produzindo, frequentemente, mais danos do que benefícios. Esta é a lógica seguida pelas diferentes legislações que admitem restrições aos registros criminais de um indivíduo depois de cumprida a pena.
É claro haverem fortes razões em sentido contrário, a começar pela alta vagueza de expressões como “imprecisa” e “descontextualizada”, o que serviria de base para limitar a liberdade de outrem. Por sua vez, a liberdade de expressão de terceiro, assim como a privacidade, funda-se na dignidade humana e é essencial ao desenvolvimento da personalidade. Há, ainda, o direito à memória e à própria integridade da história. Segundo Vint Cerf, conhecido como um dos pais da Internet, ninguém pode simplesmente ter o direito de apagar dados existentes em computadores de terceiros porque deseja que algo seja esquecido22.Por sua vez, jamais será possível saber quando uma informação pode readquirir relevância. Se alguém se torna um político após ter alguns de seus registros apagados, haverá a perda de informações que, embora antes não tivessem importância, passaram a ser fundamentais para assegurar o direito do eleitor a conhecer a história daquele candidato.
Uma alternativa para tentar minorar este problema é considerar que as decisões sobre o direito ao esquecimento são rebus sic standibus, aplicando a elas a lógica processual prevista para as relações jurídicas continuativas (NCPC, art. 502,I)23: A exemplo, poderíamos imaginar algum mecanismo que autorizasse o Google a recuperar todos os links suprimidos de seu buscador se um dia Mario Costeja González vier a se candidatar a algum cargo público. Discutir sobre os problemas técnicos e práticos relacionados à criação de algum procedimento neste sentido é algo que vai além dos escopos deste artigo. Mais, ao menos, é algo que merece alguma reflexão.
Certo é que, independentemente do ponto de partida, qualquer ponderação em casos a envolver o direito ao esquecimento deve considerar o tempo como um valor relevante bem como avaliar que tipo de mudança o passar dos anos implicou no valor dos dados em questão.
IV.2 Pessoas Públicas.
Pessoas públicas, personalidades de importância histórica e cultural não devem possuir direito ao esquecimento. A liberdade de manifestação de pensamento tem primazia sobre a privacidade e a reputação quando se cuidam de informações sobre pessoas públicas, sendo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal numerosa no sentido de destacar o caráter reduzido do âmbito de proteção à privacidade nestas situações.
No julgamento proferido na REF-MC n° 4.451-DF e da APF n° 130, o Supremo assinalou o direito de o jornalista expender críticas a qualquer pessoa, ainda que em tom áspero, contundente, irônico ou irreverente, especialmente contra as autoridades e os agentes do Estado. Embora o conflito fosse entre liberdade de expressão e o direito à honra, a mesma lógica aplica-se a casos envolvendo privacidade. O ministro Celso de Mello, em decisão proferida na Reclamação n° 15.243, consignou:
É importante acentuar, bem por isso, que não caracterizará hipótese de responsabilidade civil a publicação de matéria jornalística cujo conteúdo divulgar observações em caráter mordaz ou irônico ou, então, veicular opiniões em tom de crítica severa, dura ou, até, impiedosa, ainda mais se a pessoa a quem tais observações forem dirigidas ostentar a condição de figura pública, investida, ou não, de autoridade governamental, pois, em tal contexto, a liberdade de crítica qualifica-se como verdadeira excludente anímica, apta a afastar o intuito doloso de ofender24
O controle do poder, emanado de qualquer uma das três esferas, e o fato de estas pessoas praticarem atos capazes de repercutir para além da sua própria esfera privada ampliam o grau legítimo de ingerência na esfera pessoal da conduta das pessoas públicas, não cabendo falar em direito ao esquecimento em relação a elas. Nestas situações, o povo tem direito à história completa, sem cortes nem restrições.
Por outro lado, como indicado nos recursos especiais analisados pelo Superior Tribunal de Justiça, deve haver cautela em relação a indivíduos que se tornaram notórios em razão da ocorrência de um evento singular. Nestes casos, torna-se prudente analisar se a exclusão da narrativa de informações que levem à identificação do indivíduo reduz o valor da informação ou gera perda de contexto. Na ponderação entre princípios, a exclusão de algumas informações que levem à identificação da pessoa da narrativa é uma ferramenta importante, pois evita soluções voltadas ao tudo ou nada. Quando usada de maneira apropriada, a ferramenta pode assegurar a privacidade do indivíduo sem reduzir significativamente o valor do conteúdo divulgado nem trazer prejuízos relevantes à liberdade de expressão.
Identificar alguém pode ser essencial e possuir elevado interesse público quando a informação é atual. Esta mesma revelação, no entanto, pode gradativamente perder importância com o passar do tempo. Assim, a partir do momento em que o conteúdo é guardado para finalidades históricas e estatísticas ou é recuperado para uso em um filme ou documentário, o prejuízo a ser provocado com a divulgação de dados pessoais passa a ganhar maior peso na balança. É mais uma ferramenta a ser considerada, muito embora não leve sempre ao mesmo resultado. Como destacado pelo Superior Tribunal de Justiça, retirar o nome de Ainda Curi da enquete-reportagem implicaria inevitável perda de contexto e prejuízo à narrativa, o que não ocorreria se o mesmo procedimento fosse feito em relação à pessoa envolvida na Chacina da Candelária, mas posteriormente absolvida.
IV.3 Ilícitos Civis X Ilícitos Penais e outros de grande repercussão
Apesar da repercussão gerada pelo julgamento Google vs. Mario Costeja González, é sempre importante ressaltar ter o direito ao esquecimento sido assegurado naquele caso com suporte em um quadro fático específico. Tratava-se de uma notícia a envolver um ilícito civil, decorrido já há algum tempo, cujo dano já havia sido reparado e cujos efeitos tiveram repercussão limitada.
Em um ilícito penal grave, vale dizer, o Tribunal Constitucional alemão chegou à conclusão bastante diversa, destacando que: a) o direito à reabilitação penal não autoriza a supressão de links nas páginas dos provedores de pesquisa e b) o armazenamento de histórias antigas em arquivos digitais não pode ser equiparado à publicação de novas notícias sobre o tema, ainda que isto possa ser prejudicial à reputação do condenado. De certa maneira, o Tribunal destacou haver uma clara diferença entre restringir acesso a dados criminais que estão em poder do Estado e determinar a supressão de notícias publicadas e presentes na esfera pública.
Por sua vez, mais importante do que a própria natureza do ilícito para o exercício da ponderação é o interesse público despertado pelo fato à época (news worthy), independentemente de se tratar de um ilícito cível ou penal. Ilícitos cíveis que venham a lesar interesses coletivos ou difusos, certamente, merecem tratamento diverso.
Parece-nos totalmente indevida, por exemplo, a concessão do direito ao esquecimento a alguém envolvido na falência da Encol ou no desastre ambiental ocorrido em Mariana, ainda que considerados apenas os aspectos cíveis destes eventos. Há, afinal, manifesto interesse público no registro de infrações que afetam a sociedade de maneira particular, sejam cíveis ou penais, autorizando a preservação de informações detalhadas sobre o modo como foram realizadas, os motivos subjacentes e as pessoas envolvidas.
Nesta linha, a Corte Europeia de Justiça recentemente estabeleceu um claro limite ao direito ao esquecimento ao estabelecer que uma agência de classificação de riscos não estava obrigada a apagar de seus registros dados que ligavam certo cidadão italiano a falência de uma empresa na década de 90. 25
V.4 Necessidade de ordem judicial.
Segundo o Marco Civil da Internet, há necessidade de decisão judicial para tornar indisponível determinado conteúdo publicado por terceiros na rede, não podendo os provedores serem responsabilizados antes de qualquer medida neste sentido - art. 1926. A exceção fica na hipótese prevista no artigo 21, que cuida da chamada “vingança pornográfica”, quando há divulgação, sem autorização dos participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado. Nestes casos, deve o provedor tornar o conteúdo indisponível após o recebimento de mera notificação do ofendido, sob pena de responsabilidade subsidiária. Os dispositivos fazem referência expressa às razões do modelo legal estabelecido, consignando a finalidade de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura.
A regra estabelecida no Marco Civil contrariou o entendimento do STJ sobre o tema, segundo o qual o provedor estaria sujeito a ser civilmente responsabilizado sempre que, após o recebimento de notificação extrajudicial, deixasse de agir de forma ágil para tornar indisponível o conteúdo tido por ofensivo.27
Parece ter sido a ponderação feita pelo legislador mais acertada do que a realizada pelo Poder Judiciário. Deve ser do magistrado, e não da entidade privada, o dever de avaliar se há exercício abusivo à liberdade de expressão. Como já visto, o caráter ilícito do conteúdo é de difícil determinação na maioria das hipóteses, já que o terceiro pode estar exercendo, de maneira totalmente legítima, a respectiva liberdade na rede.
Nos casos em que uma autoridade pública afirma ter o conteúdo publicado por terceiro constituído calúnia ou difamação, por exemplo, pode até mesmo haver necessidade de dilação probatória para se verificar eventual procedência da alegação, sendo possível a oposição de exceção da verdade durante o processo judicial. Ante o quadro, não é razoável transformar o provedor em juízo cível ou criminal, impondo-lhe a obrigação de analisar o caráter ilícito de informações publicadas na rede por pessoas diversas após o recebimento de mera notificação.
A possibilidade de responsabilização do provedor após o recebimento de notificação, ademais, acaba por torná-lo em censor privado, com o poder-dever de determinar aquilo que pode ou não ser dito nos espaços públicos de discussão mais vigorosos da modernidade. Pior: se suprimir o conteúdo, o provedor sujeita-se ao risco de ser responsabilizado por aquele que o publicou, sob o fundamento de estar indevidamente cerceando a liberdade de expressão de terceiro. Ou seja, independentemente do comportamento adotado, correrá ele o risco de se ver condenado ao pagamento de dano moral: seja à pessoa que se sentiu vitimada pela publicação da notícia, seja àquele que se sentir indevidamente prejudicado pela supressão de conteúdo.
Por outro lado, dar ao provedor o poder-dever de retirar conteúdos publicados por terceiros da Internet, sob pena de responsabilização, significa atribuir a quem tem poder econômico e tecnológico uma influência desproporcional no processo de discussão pública, por mais que o Poder Judiciário esteja imbuído das melhores intenções. A medida é diretamente contrária ao que dispõe o artigo 221, § 5°, da Carta da República.
Se bastasse a solicitação de alguém que se sente ofendido para que, automaticamente, o provedor tivesse a obrigação de restringir a liberdade de terceiro, o sistema constitucional revelar-se-ia totalmente incoerente: a liberdade de expressão seria esvaziada justamente nas hipóteses que ela é mais importante: no pronunciamento de manifestações incômodas na esfera pública. A circunstância de alguém se considerar ofendido por uma manifestação não autoriza, por si só, o direito de exigir a restrição à liberdade de terceiro, já que ela existe também – e, sobretudo – para proteger esse tipo de conteúdo.
A situação é bastante distinta nas hipóteses envolvendo imagens de nudez e sexo realizadas em ambiente privado e divulgada sem o consentimento dos participantes, pois, nestes casos, há flagrante violação ao direito à intimidade e à privacidade, podendo o caráter ilícito do conteúdo ser avaliado objetivamente28. Casos envolvendo a divulgação de pornografia infantil e vingança pornográfica, podem ser, imediatamente, considerados ilícitos.
A mesma lógica vale para o exame de situações a envolver o direito ao esquecimento, já que, frequentemente, está-se diante de um caso complexo, cuja existência de alguma circunstância fática pode levar à solução completamente diversa. Nestes casos, a possibilidade de responsabilizar o provedor após o descumprimento de uma notificação extrajudicial na qual é solicitada a retirada de conteúdo, salvo nos casos em que é possível avaliar a ilicitude de forma clara e objetiva, tornaria a proteção da privacidade um poderoso instrumento para a prática de censura prévia.
IV.4 A posição preferencial da liberdade de expressão.
Os exemplos citados no decorrer deste artigo indicam que atribuir ao Poder Judiciário o controle sem parâmetros de ponderação a serem observados não garante, por si só, nem segurança jurídica nem uma correta conformação entre a liberdade de expressão e outros princípios constitucionais como honra e privacidade. Se não houver parâmetros claros a serem seguidos, sejam eles estabelecidos pelo Supremo, sejam eles estabelecidos em lei, conceitos como necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito, longe de conferirem maior segurança aos casos nos quais os princípios entram em tensão, produzirão milhares de decisões distintas, proferidas por diferentes julgadores, cada um com sua visão particular de mundo.29 A situação de insegurança vem sendo exposta pelo ministro Celso de Mello em diferentes pronunciamentos:
Tenho enfatizado, de outro lado, em diversas decisões no Supremo Tribunal Federal (como aquela que proferi na Rcl 18.566-MC/SP), que o exercício da jurisdição cautelar por magistrados e Tribunais não pode converter-se em prática judicial inibitória, muito menos censória, da liberdade constitucional de expressão e de comunicação, sob pena – como já salientei em oportunidades anteriores – de o poder geral de cautela atribuído ao Judiciário qualificar-se, anomalamente, como o novo nome de uma inaceitável censura estatal em nosso País.30
Desde o caso Murdock v. Pensilvannia, em 1943, a Suprema Corte Americana afirma que as liberdades de pensamento e expressão possuem posição preferencial no rol de direitos fundamentais, o que significa imputar presunção de inconstitucionalidade sobre todo e qualquer ato voltado à supressão do discurso, mesmo quando de natureza judicial.31 Considerar estas liberdades numa posição preferencial, por sua vez, não significa afirmar a existência de hierarquia entre elas e outros direitos, mas acarreta, nos casos de conflito, atribuir o ônus argumentativo a quem objetiva suprimir manifestações da esfera pública. A supressão do discurso deve ser uma rara exceção, devendo haver autocontenção do Poder Judiciário e clara preferência por instrumentos de responsabilização a posteri, tais como o exercício do direito de resposta e de retificação e a imputação de responsabilização civil e penal.32
No Brasil, conforme o ministro Luis Roberto Barroso, há ao menos três razões para se considerar liberdade de expressão um direito preferencial.33 Primeiro, a liberdade de expressão constitui pressuposto do regime democrático e matriz indispensável para a realização de diversos outros direitos fundamentais, tais como o direito de voto, de reunião, de associação e de liberdade religiosa. O próprio desenvolvimento da personalidade, diz, depende da livre circulação de ideias.
Segundo, a liberdade de expressão é indispensável para o conhecimento da história, para o progresso social e para o aprendizado das novas gerações.
Se a ideia impopular contém a verdade e é de alguma forma silenciada, perde-se a oportunidade de trocar o erro pelo acerto.34 Se ambas as opiniões contêm parte da verdade, o confronto de ideias em uma discussão aberta garante o melhor meio para melhorar a qualidade da informação.
Terceiro, no Brasil, o passado condena. A história do país, antiga e recente, revela uma clara preferência pela censura em detrimento da criação de espaços públicos de discussão robustos e livres, tanto da coerção pública quanto privada.
Desse modo, o ônus argumentativo deve ser sempre de quem busca suprimir expressões de terceiros na esfera pública, competindo-o demonstrar, de forma evidente, que a restrição do discurso não lesa nem o interesse público nem a dignidade humana de terceiro, sendo ainda a única forma de garantir a respectiva privacidade. Suprimir as informações que retratam uma pessoa pode significar perda da integridade da história, uma afronta ao direito à memória e clara ofensa à liberdade de expressão e ao direito de acesso à informação, devendo-se evitar que o direito ao esquecimento ou outros aspectos do direito à privacidade sejam utilizados como a censura dos tempos modernos.
IV.4 Crianças e Adolescentes
Todos os países democráticos autorizam maiores restrições à liberdade de expressão nas hipóteses a envolver crianças e adolescentes, tendo em vista a existência de uma específica situação de imaturidade e vulnerabilidade destes sujeitos. No Brasil, o princípio da proteção integral é acolhido pela Carta da República. No sistema americano de direitos humanos, o artigo 13, inciso II, da convenção estabelece uma única hipótese na qual é admitida a restrição prévia ao discurso, consignando que “a lei pode submeter os espetáculos públicos a censura prévia, com o objetivo exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência, sem prejuízo do disposto no inciso 2”.
Assim, limitações maiores são admitidas na elaboração de discursos sobre e para crianças e adolescentes, seja de modo a limitar a exposição delas a certos tipos de conteúdo, seja porque pessoas sem o desenvolvimento cognitivo completo devem gozar de um grau maior de proteção à privacidade do que adultos plenamente capazes.35 Toda criança tem direito às medidas de proteção que a sua condição de menor requer por parte da sua família, da sociedade e do Estado, havendo elevado interesse público na proteção da juventude.
Exemplo claro no qual a balança pende para o direito ao esquecimento foi o recentemente ocorrido em São Paulo, no qual hackers “invadiram” os computadores de uma escola, “roubaram” dados sobre os alunos e os publicaram na rede. Aqui, não apenas há claro interesse público na proteção de informações pessoais de crianças e adolescentes, como foi manifestamente ilícita a forma como eles foram coletados. Posts, vídeos e fotos publicados por crianças e adolescentes ou as retratando merecem especial consideração, tendo em vista os danos que possam ser causados à formação da identidade de uma pessoa ainda em estágio de desenvolvimento. Quanto menor a idade, maior o peso em favor da privacidade.
VI. Conclusão
O desenvolvimento tecnológico e a maior facilidade na coleta, armazenamento e processamento de dados pessoais apresentam claros riscos à privacidade, que, tem entre seus aspectos, a garantia do direito ao esquecimento. A construção de uma memória coletiva de caráter permanente e de fácil acesso, mediante o uso de buscadores, produz riscos à autonomia individual, impactando a capacidade de eleger diferentes estilos de vida, superar fatos pregressos e de, simplesmente, “começar de novo”.
Na solução entre conflitos entre privacidade e liberdade, no entanto, deve-se resistir à tentação de adotar como critério de ponderação o simples juízo de quem se sinta ofendido ou prejudicado com disseminação do conteúdo. As liberdades de manifestação e de acesso à informação continuam a ser a regra geral em todos os meios, inclusive no âmbito da Internet.
O presente artigo procurou destacar parâmetros a serem observados em cada caso concreto, sempre pelo Poder Judiciário, não competindo imputar ao provedor a responsabilidade de avaliar informações, cuja potencial ilicitude não possa ser analisada de forma objetiva. Buscou ressaltar também os riscos de censura oferecidos pela completa ausência de parâmetros, ainda que eventuais restrições à liberdade de expressão sejam oriundas apenas de decisões judiciais.
A proteção da personalidade não pode sobrepor–se ao direito de amplo acesso à informação e à liberdade de manifestação, devendo-se sempre considerar vários fatores relevantes no processo de ponderação e conferir prioridade a soluções que não impliquem a supressão do discurso.
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