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O Fair use no Direito Brasileiro


 I – Introdução  

 

Um sistema autoral equilibrado deve ser capaz de assegurar o direito de propriedade dos autores, mediante a já tradicional concessão de direitos exclusivos, com outros princípios constitucionais, tais como a liberdade artística e de expressão. A principal finalidade é garantir a existência de incentivos econômicos à produção de obras intelectuais e, ao mesmo tempo, impedir que o monopólio das obras concedido aos criadores venha a criar ônus e impedimentos desnecessários ao acesso à informação e ao exercício da criatividade de terceiros, gerando barreiras despropositadas à difusão do conhecimento.  



Tendo em vista a inevitável tensão entre relevantes princípios, a imposição de limitações aos direitos autorais sempre foi considerada uma das matérias mais importantes e controversas em todo mundo, sendo no Brasil tratada nos artigos 46, 47 e 48 da Lei n° 9.610, de 1998. O presente artigo busca analisar se as limitações previstas no texto legal possuem caráter taxativo ou exemplificativo bem como examinar se é possível e legítimo aproveitar regras e parâmetros criados pela doutrina do fair use no direito brasileiro.  

Desde 2011, o Superior Tribunal de Justiça passou a firmar tese no sentido de que as limitações aos direitos autorais versadas em lei constituem um rol meramente exemplificativo, podendo o juiz identificar outras hipóteses nas quais o uso da obra protegida sem autorização não implica ofensa aos direitos do titular.  

No Resp n° 964.404/ES, o STJ afastou a possibilidade de cobrança pelo ECAD de direitos autorais de entidade confessional em virtude da realização de execuções musicais em evento realizado religioso na escola da entidade, sem fins lucrativos e com entrada gratuita. A Turma assentou a necessidade de interpretação sistemática e teleológica do artigo 46 da Lei autoral, de modo a assegurar a tutela de outros princípios constitucionais em potencial colisão com o direito do autor, tais como o acesso à cultura, à educação e à religião.1  

Na mesma linha, a Segunda Seção do STJ, no Resp n° 1575225/SP, considerou indevido o pagamento de direitos autorais pela execução de músicas em festa junina realizada em escola, tendo em vista o caráter comunitário, pedagógico e não comercial deste evento. Na ocasião, destacou o min. Raul Araújo que a solução a respeito da possibilidade de cobrança de direitos autorais “depende do caso concreto, pois as circunstâncias de cada evento, a serem examinados soberanamente pelo julgador ordinário, é que irão determinar o seu devido enquadramento à espécie2. No período, ainda houve decisões monocráticas tomadas na mesma direção.3  

A tendência do Superior Tribunal de Justiça já há uma década, portanto, foi se afastar da doutrina tradicional sobre o tema que defende serem as limitações legais ao direito autoral previstas na Lei n° 9.610/98 taxativas. A tese sobre a taxatividade das limitações pode ser assim resumida:  

  1.  O caráter taxativo das limitações legais é a única maneira de conciliar a interpretação dos artigos 46, 47 e 48 da Lei autoral com o artigo 29 do mesmo diploma, o qual é bastante amplo e inclusivo no que se refere à proteção dos direitos do autor. Conforme defendem, o artigo 29 é expresso e mesmo repetitivo ao afirmar que depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades presentes ou futuras (caput e inciso IX), utilizando ainda no decorrer dos respectivos incisos expressões voltadas a ressaltar a amplitude de proteção do titular, tais comoquaisquer outras transformações” (inciso III), “processo assemelhado” (inciso III, alínea “g”), e “cabos de qualquer tipo e meios de comunicação similares que venham a ser adotado” (inciso VIII, alínea “i”). A partir de então, argumentam que conferir às limitações legais natureza exemplificativa implicaria expressa violação ao dispositivo mencionado.  

  1. fortes restrições à adoção de uma cláusula geral no ordenamento jurídico brasileiro, o qual é fundado nos sistemas de civil law e na tradição europeia de droit d´auter, que restringem a discricionariedade do magistrado para a criação de normas concretas a partir de princípios e cláusulas gerais.  

Apesar dos pronunciamentos do Superior Tribunal de Justiça mencionados, o debate sobre o caráter exemplificativo ou taxativo das limitações continua a ser fundamental. Primeiro, porque a doutrina tradicional continua a defender a natureza taxativa das limitações. Segundo, porque alguns acórdãos posteriores proferidos pelo STJ parecerem indicar, ao menos para um observador mais apressado, certo desacordo com a tendência inaugurada a partir de 2011.  

Em aparente contradição com a tendência originada, o STJ assentou que “a cobrança de direitos autorais, nos termos da Lei 9.610/98, é possível independentemente da aferição de lucros pelo promotor do evento”4 Por sua vez, consignou a existência de entendimento consolidado no sentido de que “a luz da Lei n. 9.610/1998, o STJ firmou jurisprudência no sentido de que são devidos direitos autorais mesmo em eventos que não visem, direta ou indiretamente, ao lucro. ” bem como destacou “ser devida a cobrança de direitos autorais pela execução de música em festa de casamento realizada em clube, mesmo sem a existência de proveito econômico”.5 

Torna-se também importante esclarecer se estes precedentes são efetivamente contraditórios com os inicialmente mencionados neste texto ou se, de fato, há razões e diferenças suficientes entre estes casos e os anteriores a justificar soluções distintas.  

Vale por fim destacar que a perspectiva sobre a função e o papel do direito autoral tem mudado radicalmente, em especial ante o rápido desenvolvimento da sociedade da informação. O aumento exponencial da capacidade individual de criar, reproduzir e distribuir obras digitais assim como de transformar de forma criativa obras anteriores, vistas na Internet, ampliou de maneira extraordinária o âmbito de aplicação do direito autoral. Antes considerado um ramo específico do direito, incidente sobre algumas áreas da indústria e da economia, o conhecimento sobre direito autoral tornou-se essencial para qualquer um que queira assumir um papel mais ativo na sociedade moderna.  

O surgimento de novas tecnologias, as quais permitem a reprodução massiva de cópias idênticas e a rápida circulação de informação desprovida de qualquer suporte físico entre outros acontecimentos, levou ao surgimento de novos desafios para o direito autoral assim como uma maior necessidade de ponderá-lo com outros interesses e princípios constitucionais.  

II – Por uma teoria do direito autoral fundada na liberdade de expressão 

 

Como uma lei ordinária que confere a um particular o direito de restringir a liberdade de expressão de terceiros, conferindo a ele o poder de retirar livros, jornais e filmes de circulação – o que em outros contextos é considerado uma forma de censura prévia – poder ser compatível com o direito constitucional à liberdade artística e de expressão?  

Não se nega que o direito autoral em nosso ordenamento jurídico também é alçado ao patamar de direito fundamental. Desde a Carta de 1891, vale dizer, ele consta no rol de direitos individuais de todas as Constituições6. Na carta de 1988, os incisos XXVII e XXVIII do artigo 5° dispõem, que aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar; sendo assegurados nos termos da lei: a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas; b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas. 

Não obstante, liminares voltadas a suprimir o discurso e retirar conteúdos expressivos de circulação são quase sempre vedadas em casos nos quais a liberdade de expressão entra em choque com outros direitos fundamentais. Isto constitui regra não apenas do ordenamento jurídico brasileiro7, mas da Convenção Interamericana de Direitos Humanos8 e de diversos outros países democráticos do mundo9. Essa preocupação, contudo, não se revela tão intensa quando estão em jogo direitos autorais. Por que o tratamento é distinto?  

A livre circulação de ideias é um dos fundamentos de qualquer sociedade democrática, sendo essencial ao controle do governo, à busca da verdade e ao desenvolvimento da própria personalidade individual. Ao mesmo tempo, sabe-se que o direito autoral é capaz de criar grandes restrições à livre troca de informação. De certa maneira, o direito autoral impede pessoas de utilizarem textos, histórias, músicas, quadros, esculturas e sons presentes em nossa cultura para se expressarem.  

Em síntese, constitui um conjunto de regras voltadas a criar monopólios/propriedades – a depender da corrente a que se filia o intérprete - sobre expressões. O titular de um direito autoral tem o poder de proibir ou permitir o uso de sua obra bem como demandar o pagamento por ela em troca de uma licença, sujeitando os infratores até mesmo à imposição de medidas criminais. É um sistema regulatório, portanto, que autoriza fortes obstáculos ao discurso de terceiros e a troca de ideias e informações, inclusive com a concessão de liminares voltadas à apreensão de obras com conteúdo expressivos ou a supressão de sites da internet dedicados a disponibilizar conteúdos protegidos por direito autoral.   

Se quando a liberdade de expressão entra em choque com outros direitos fundamentais este tipo de busca e apreensão não é possível, cabe indagar o que justifica medidas neste sentido quando há eventual colisão com os direitos exclusivos do autor. A resposta revela-se importante, pois contribui para elucidar diversas polêmicas envolvendo os direitos autorais, inclusive a referente às limitações.  

A maior parte da explicação decorre das próprias características econômicas da informação. O direito de alguém excluir os outros da posse, uso e gozo de um bem tem frequentemente sido citado como a principal característica do direito de propriedade. Essa qualidade permite aos proprietários reaver os recursos investidos em seus bens, encorajando-os consequentemente a investir tempo, trabalho e dinheiro no desenvolvimento de seu patrimônio.  

No entanto, a característica mais marcante da informação como um bem é o fato de que os direitos de propriedade sobre a informação são difíceis de se manter. Enquanto apenas uma pessoa pode comer um prato, dirigir um carro ou usar uma camisa durante um determinado tempo, a informação é indefinidamente reproduzível. Ela é um bem não-exclusivo e não-competitivo, pois a mesma informação ou ideia pode ser entendida ou compartilhada simultânea ou sucessivamente por um número indefinido de pessoas sem que a pessoa que a produziu precise perder a posse ou o uso sobre ela.  

O acesso à informação por uma pessoa ou grupo social não obsta seu acesso simultâneo ou posterior pelos demais. Além disso, o compartilhamento da informação com mais pessoas, depois de produzida, não implica acréscimo relevante de custos. Na verdade, estes custos de distribuição hoje tendem a zero com a Internet. No entanto, apesar de não haver nada de errado no fato de a informação ser um bem não-exclusivo e não-competitivo, do ponto de vista econômico, tal característica produz uma falha de mercado. Segundo Denis Borges Barbosa: 

 

Deixado à liberdade do mercado, o investimento na criação do bem intelectual seria imediatamente dissipado pela liberdade de cópia. As forças livres do mercado fariam com que a competição – e os mais aptos nela - absorvessem imediatamente as novas obras intelectuais. Assim é que a intervenção é necessária – restringindo as forças livres da concorrência – e criando restrições legais a tais forças.10  

Em outras palavras, haveria um número muito menor de pessoas dedicadas a investir tempo, estudo, esforço e dinheiro para produzir bens intelectuais se, uma vez finalizado o bem intelectual, não fosse assegurado ao autor formas para recuperar seus investimentos e esforços bem como para impedir a prática de concorrência desleal.   

Desse modo, ao conferir direitos exclusivos sobre criações do espírito, o direito autoral acaba por produzir incentivos econômicos indispensáveis para a elaboração e distribuição de inúmeras obras que formam parte essencial do discurso público e da cultura nas sociedades modernas. Assim, o direito autoral acaba por servir como um dos catalizadores da própria liberdade de expressão, criando um incentivo econômico indispensável à produção do discurso.  

Assim, em um conflito entre direitos do autor e alguém que busca utilizar, reproduzir, distribuir ou transformar a obra intelectual em disputa sem a devida autorização, o direito fundamental à liberdade de expressão estará nos dois polos da demanda, ao contrário do que ocorre quando a liberdade de expressão entra em choque com direitos fundamentais como privacidade e honra.  

O próprio instituto de direito autoral assim incorpora princípios pertinentes à liberdade de expressão e a serve de instrumento, sendo este o motivo pelo qual há maior possibilidade de impor restrições ao discurso de terceiros nestes casos.11Mas como frequentemente a diferença entre o remédio e o veneno é a dose, constitui tarefa do sistema regulatório estabelecer regras equilibradas e razoáveis que permitam aos autores o exercício do monopólio sobre as respectivas expressões sem delimitar excessivamente o acesso à informação, à cultura e à expressão de terceiros.  

A inexistência deste equilíbrio, contudo, é um dos maiores problemas do direito autoral na atualidade. Segundo Neil Netanel, é fato ter ocorrido um distanciamento do objetivo inicial do direito autoral, fazendo com que hoje haja restrições desproporcionais ao mercado de ideias. De acordo com o autor, uma das finalidades da liberdade de expressão é a disseminação de informação e opinião ao maior número possível de pessoas. Hoje, porém, o direito autoral, em grande medida, serve para inibir o discurso e produzir autocensura.12 Atualmente, ainda, veremos que o direito autoral é com bastante frequência seletivamente invocado pelo titular, não como uma forma de proteger seu direito patrimonial e moral, mas como uma maneira de suprimir eventuais críticas e discordâncias.  

Limites aos direitos autorais constituem ao mesmo tempo limites à liberdade de expressão, ao acesso à informação e à educação, competindo avaliar a proporcionalidade das restrições impostas aos diferentes casos concretos analisados. Eventuais conflitos, assim, parecem muito mais suscetíveis a um exercício de ponderação do que à lógica da subsunção e da estrita aplicação de uma hipótese prevista em lei ordinária a um caso concreto.  

 

III – Fair use e a incidência dos direitos fundamentais às relações privadas.  

 

O direito civil não ficou imune ao aparecimento do Estado Constitucional e às grandes transformações sociais. O direito privado, assim como os demais, sofreu um processo de constitucionalização, com a elevação ao plano constitucional de seus princípios fundamentais. O fenômeno é expressamente reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça em diferentes acórdãos, a exemplo do proferido no Resp n° 1335153, de relatoria do min. Luis Felipe Salomão:  

 

Embora criado pela Constituição Federal como guardião do direito infraconstitucional, no estado atual em que se encontra a evolução do direito privado, não me parece possível a esta Corte de Justiça analisar as celeumas que lhe aportam "de costas" para a Constituição Federal, sob pena de ser entregue ao jurisdicionado um direito desatualizado e sem lastro na Lei Maior. 

 

Em síntese, o Superior Tribunal de Justiça, cumprindo sua missão de uniformizar o direito infraconstitucional, não pode conferir à lei uma interpretação que não seja constitucionalmente aceita (Resp. 1.183.378/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 25/10/2011); e assim o fazendo, não se há falar também em usurpação de competência do Supremo Tribunal Federal. 

 

Nesse sentido, já decidiu o STF não haver usurpação, pelo STJ, no julgamento de demanda com "causa de pedir fundada em princípios constitucionais genéricos, que encontram sua concreta realização nas normas infraconstitucionais" (Rcl 2.252 AgR-ED, Relator (a): Min. MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 18/03/2004).13 

 

O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, em diversas ocasiões já reconheceu a eficácia horizontal dos direitos fundamentais no ordenamento jurídico brasileiro, seja assegurando o amplo direito de defesa na hipótese de exclusão de associado de cooperativa (RE n° 158.215/RS) ou de sócio dos quadros de sociedade civil (RE n° 201.819/RJ), seja determinando que a aplicação do estatuto de uma empresa privada não pode discriminar os empregados em virtude da nacionalidade (RE n° 161.243/DF).  Mais recentemente, por sua vez, o Plenário do Supremo, ao afastar a necessidade de autorização prévia à publicação de biografias fez questão de salientar ser proibido pela Constituição qualquer tipo de censura, não podendo o exercício à liberdade de expressão ser cerceado pelo Estado ou por particular. No ponto, a relatora, ministra Carmén Lúcia, consignou:  

 

O sistema constitucional brasileiro traz, em norma taxativa, a proibição de qualquer censura, valendo a vedação ao Estado e a particulares. Assentou-se a horizontalidade da principiologia constitucional, aplicável a entes estatais ou a particulares, ou seja, os princípios constitucionais relativos a direitos fundamentais não obrigam apenas os entes e órgãos estatais, mas também são de acatamento impositivo e insuperável de todos os cidadãos em relação aos demais. O exercício do direito à liberdade de expressão não pode ser cerceado pelo Estado nem pelo vizinho, salvo nos limites impostos pela legislação legítima para garantir a igual liberdade do outro, não a ablação desse direito para superposição do direito de um sobre o outro.14 

 

Não compete ao STJ, assim, interpretar as limitações aos direitos autorais “de costaspara a Constituição, considerando como ofensa aos direitos exclusivos casos que, embora não previstos expressamente na lei, imponham restrições excessivas e desnecessárias à liberdade de manifestação, ao acesso à informação ou à educação de terceiros sem provocar prejuízos plausíveis ao titular do direito de autor.  

 

Atualmente, a aplicação da legislação autoral sem lastro na Carta da República leva a situações absurdas e desproporcionais, tornando ilícitas atividades que, além de não provocar nenhum prejuízo ao titular, produzem danos excessivos ao direito de terceiros. Pela interpretação literal da lei, por exemplo, há violação ao direito autoral se um pai “posta” no facebook um vídeo caseiro das pessoas cantando “Parabéns pra Você” na festa de aniversário do filho. A música, afinal, ainda é protegida por direito autoral e a limitação prevista no inciso VI do artigo 46 da Lei n° 9.610/98, o qual trata do que se pode fazer no “recesso familiar”, não alcança nem o direito de publicação nem o de distribuição.  

 

Igualmente, se alguém copia para o próprio smartphone músicas de CDs legitimamente comprados durante a década de 90– afinal quase ninguém mais ouve música por meio de CDs – violará a legislação infraconstitucional, pois não há exceção para a realização de cópias para uso privado e voltadas a garantir a portabilidade tecnológica. Igualmente, um adolescente que, empolgado com as aulas de violão, resolve gravar um vídeo tocando uma música e postá-lo no youtube também contraria a lei, pois o próprio ato de gravação já precisaria de autorização do titular.  

De outra sorte, parece incompatível com o direito fundamental de liberdade de opinião e de expressão, a utilização seletiva do direito autoral para impedir a exposição ao público de discursos discordantes. A exemplo, ficou famoso o caso no qual a The Church of Scientology processou uma antiga fiel e o Whashington Post por divulgar material no qual realizavam críticas à entidade, afirmando que a publicação de suas escrituras na Internet implicava ofensa ao direito autoral15 

Revelar-se-ia ainda incompatível com o direito fundamental de acesso à informação a outorga a um particular do poder/direito de impedir, com base nos direitos exclusivos, o acesso ao vídeo mais completo do assassinato do presidente Kennedy16 ou o acesso ao vídeo que registrou a explosão do ônibus espacial Challenger, na década de 8017 

No Brasil, também há casos polêmicos envolvendo a propriedade intelectual e o direito à informação e à crítica. A Igreja, por exemplo, chegou a vetar o uso da imagem do Cristo Redentor no filme “Rio, eu te amo”, por discordar do conteúdo da obra18. Apesar da posterior desistência de veto19, o caso é um ótimo exemplo sobre eventuais usos do direito autoral de maneira incompatível com a liberdade de expressão.  

Recentemente, ainda, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça considerou lícita a criação do site Falha de São Paulo, afastando a alegação de violação ao direito de marca e ao direito autoral.  

No caso, o ministro Luis Felipe Salomão, ao interpretar o artigo 47 da Lei n° 9.610, segundo o qual “ são livres as paráfrases e paródias que não forem verdadeiras reproduções da obra originária nem lhe implicarem descrédito”, destacou a necessidade de aplicar o dispositivo de acordo com o princípio à liberdade de expressão, em especial ante a considerável carga subjetiva do termo “descrédito” e em razão do fato de a ironia e a crítica serem a essência da paródia, não podendo a legislação infraconstitucional tornar ilícito o conteúdo simplesmente em razão da respectiva irreverência. 20 O acórdão constitui mais um exemplo de como a aplicação da legislação autoral deve incorporar princípios pertinentes à liberdade de expressão.  

Vê-se, portanto, que a lei autoral, assim como o restante da legislação civil, deve ser interpretada de maneira constitucionalmente adequada, o que implica afastar a existência de uma lista taxativa de limitações ao direito do autor. Nas palavras de Sérgio Branco: 

 

“não é apenas o Estado que pode pôr em risco direitos fundamentais dos particulares, de modo que, diante da ameaça potencial por parte dos próprios particulares, despicienda a arguição sobre a possibilidade de aplicação dos direitos fundamentais às relações entre particulares. ”21 

 

IIIFair Use, Direito Interno e Direito Internacional  

 

Parcela da doutrina argumenta que a instituição de uma cláusula geral no direito brasileiro mostra-se incompatível com os artigos 9(2) da Convenção de Berna22 e 13 do Acordo TRIPS23, pois as limitações ao direito autoral deixariam de ser determinadas pelo direito interno para casos especiais, o que é exigido pelos tratados mencionados. Afirmam, ainda, a incompatibilidade de uma cláusula geral com o direito pátrio, o qual é fundado no sistema romano-germânico e, portanto, seria avesso à criação do direito pelo magistrado.  

 

O argumento, contudo, não encontra amparo na atual realidade internacional. Mais de quarenta países do globo, os quais representam pelo menos um terço da população mundial, aplicam a doutrina do fair use ou do fair dealing. De fato, cresceu o número de nações que acolheu a doutrina nos últimos anos, mediante a incorporação de uma cláusula geral ao término de uma lista exemplificativa de limitações ao direito do autor24. Entre estes países, vale dizer, há aqueles cujo sistema jurídico é fundado na civil law, tal como a Coréia do Sul, que adotou a cláusula do fair use em 2011. 25 

Ainda assim, não se tem conhecimento de países acusados de desrespeitar a Convenção de Berna ou o Acordo TRIPS em virtude da aplicação desta metodologia, já que, com uma cláusula geral, o exercício de ponderação pelo magistrado é fundado na existência de um caso concreto e de uma situação fática específica apresentada para análise, não constituindo uma licença geral de utilização de obras protegidas.  

Segundo um grupo de juristas europeus, a regra dos três passos não impede que limitações aos direitos autorais sejam estabelecidas por meio de decisões judiciais, na medida em que, a cada nova sentença, um novo caso específico torna-se conhecido e particularizado26. O uso da doutrina do fair use, desse modo, não implica violação à cláusula dos acordos que impõem a existência de limitações a casos especiais.  

A tradição romano-germânica, por sua vez, nunca impediu a existência de hipóteses exemplificativas na legislação civil brasileira nem a presença de expressões abertas. Ao revés, em todos os ramos do direito nacional presenciamos cada vez mais elementos típicos da common law, tais como o uso de cláusulas gerais e conceitos indeterminados na lei ordinária e de institutos processuais que conferem força vinculante e repercussão geral às decisões das cortes superiores. Listas exemplificativas nunca se revelaram incompatíveis com o sistema romano-germânico.  

É importante também destacar a existência de uma significativa diferença entre o texto do artigo 9(2) da Convenção de Berna e o seu equivalente no acordo TRIPS. Conforme o artigo da convenção de Berna, é a legislação de cada país a responsável por permitir a reprodução de trabalhos protegidos, desde que observada a regra dos três passos, ao passo que, no artigo 13 do acordo TRIPS, é removida a necessidade de que as limitações estejam previstas na lei nacional.  

Conforme Justin Hughes, não há nada no acordo TRIPS que determine a forma como cada país deve estabelecer limitações específicas ao direito autoral, o que deixa as diferentes nações livres para estabelecer o método a ser utilizado para a implementação do acordo. Com a edição do tratado, diz, deixou de haver a imposição prevista na convenção de Berna de que os casos específicos de limitação aos direitos autorais estejam previstos na legislação interna27 

Nada impediria, por exemplo, a depender das diferentes constituições, que, em determinado país, as limitações aos direitos autorais fossem determinadas por meio de uma resolução expedida por uma agência reguladora. Sob a perspectiva do direito internacional, ao menos, nada poderia ser feito, desde que observada a regra dos três passos. 28 

A regra dos três passos, assim, não proíbe a adoção de parâmetros um pouco mais abertos no ordenamento jurídico interno, conferindo maior discricionariedade ao magistrado para particularizar os casos concretos. 

 

V - Fair Use, Limitações aos Direitos Autorais e Parâmetros de Ponderação.  

 

Reconhecida a possibilidade de ponderação em relação às limitações aos direitos autorais, deve-se buscar critérios para que esta não ocorra de maneira arbitrária. Causa, assim, preocupação a afirmativa feita no Resp n° 1.575.225/SP, segundo o qual a solução acerca da cobrança de direitos autorais depende do exame das circunstâncias, as quais serão examinadas “soberanamente pelo julgador ordinário”.  

É tarefa das cortes superiores estabelecer quais são os parâmetros e os critérios de ponderação a serem utilizados pelas instâncias ordinárias na hora de fazer o enquadramento do caso concreto ao direito, sob pena de estabelecimento de um cenário de completa insegurança jurídica e indeterminação.  

Do contrário, diferentes tribunais do país certamente entenderão de maneira diversa quais são os fatores relevantes para definir os limites aos direitos autorais, conferindo a estes fatores pesos distintos. Assim, sob o manto da impossibilidade de o STJ rever o exame de fatos e provas, se autorizará diferentes juízes ordinários a utilizar os mais diversos métodos para realizar a ponderação entre os direitos exclusivos, de um lado, e a liberdade de expressão e o acesso à informação de outro, o que implicará na criação de um sistema regulatório instável e imprevisível.  

Em outras palavras, cabe ao STJ definir o que as instâncias ordinárias, ao analisar os fatos, devem considerar juridicamente relevante para fazer as distinções entre os diferentes casos concretos e isso ocorrerá exatamente mediante o conhecimento e análise de diferentes recursos especiais. Nestes casos, não caberá ao STJ o reexame de fatos e provas, mas o correto enquadramento do quadro fático estabelecido pelo tribunal de origem à uma legislação autoral interpretada com suporte nos princípios pertinentes à liberdade de expressão. Os tribunais de origem, por sua vez, longe de serem soberanamente livres, deverão examinar os casos concretos com base nos parâmetros jurídicos considerados relevantes pela corte superior.  

Em resumo, o teste de proporcionalidade específico deve ser estabelecido pelo STJ, e não pelo juiz ordinário.  

 

IV.1 – Fair Use  

 

A doutrina do “fair use”, considerada a grande tradição e influência, pode servir como uma boa fonte ao direito brasileiro, no qual a ideia de que é possível avaliar casos relacionados às limitações ao direito autoral mediante a ponderação é uma certa novidade.  

A origem do fair use está no direito inglês, no qual as limitações aos direitos autorais atualmente estão amparadas na doutrina intitulada “fair dealing”. No sec. XIX, no caso Folsom v. Marsh, o juiz Joseph Story consignou que algumas utilizações de obras protegidas, ainda que sem autorização do titular, não seriam incompatíveis com a legislação federal aplicável. Ao revés, constituiriam um “justifiable use”, o que afastaria a possibilidade de responsabilização cível ou criminal. No mesmo caso, ele estabeleceu os quatro parâmetros que magistrados devem observar a fim de determinar quando o uso é realmente justificado. São eles:  

 

  1. O propósito e o caráter do uso, incluindo se esse uso se destina a fins comerciais ou é para fins educacionais sem fins lucrativos; 

  1. A natureza/característica da obra protegida; 

  1. A quantidade e a relevância da parte da obra protegida que foi usada em comparação ao todo da obra sob exame do magistrado; e 

  1. O impacto que o uso pode causar no mercado potencial da obra protegida ou no respectivo valor.  

 

Com o passar dos anos Folsom v. Marsh se mostrou bastante influente nas cortes americanas, tornando o fair use um frequente argumento da defesa em ações envolvendo a violação de direitos autorais. Em 1976, o congresso americano alterou o estatuto sobre direito autoral, positivando a doutrina na Seção 107 do US Code. Deixou claro, contudo, que a previsão legal não tinha qualquer intenção de “congelar” o progresso da jurisprudência, que deveria continuar a evoluir levando especialmente em consideração o acelerado desenvolvimento tecnológico.  

Assim, é importante ressaltar que, mesmo após a codificação dos fatores de ponderação em lei, a doutrina do fair use continua a ser aplicada caso a caso pelos diferentes juízes federais do país. Nenhum dos quatro fatores estabelecidos possui hierarquia sobre os demais nem é determinante. Em outras palavras, mesmo o uso com finalidade comercial pode ser considerado justificado, deste que os outros fatores façam um contrabalanço.  

Neste sentido, as paródias no direito americano começam com uma alta probabilidade de serem consideradas uso razoável, pois, mesmo quando possuem clara destinação comercial, tais como os filmes “Top Gang” e “Todo Mundo em Pânico”, são perfeitamente admitidas como fair use, tendo em vista o peso exercido pelos outros critérios legais, em especial o alto grau de originalidade envolvido e o caráter transformativo do uso29 

Por outro lado, a inexistência de finalidades lucrativas não é suficiente para que o uso de uma obra seja considerado razoável, podendo haver ofensa ao direito autoral mesmo quando há atividades educativas e sem fins comerciais. No ponto, a legislação nacional adota a mesma linha, já que a mera inexistência de proveito econômico em algum evento não legitima a ausência de pagamento de direitos autorais.  

No Brasil, parte dos autores já se mostrou contrária ao fair use sob o argumento de que a doutrina se ampara em uma perspectiva econômica do direito autoral, e não em uma perspectiva personalista, como a do direito brasileiro, a qual atribui alta relevância à dignidade do autor e à dimensão moral da propriedade autoral.  

Afirma-se que, ao contrário do sistema de copyright, o sistema brasileiro é fundado no droit d´auter, o qual parte da premissa de que há um vínculo psicológico entre o criador e sua obra, considerando que certos laços entre ele e o objeto criado são essenciais ao desenvolvimento da própria personalidade.  

Não obstante, o fato de o direito autoral brasileiro fundar-se em uma perspectiva mais personalista, por si só, não impede a aplicação da ponderação, mas apenas trás para a balança mais um fator jurídico relevante, que é a garantia dos direitos morais do autor.  

Por sua vez, não é mais correto afirmar a inexistência de proteção a direitos morais do autor no ordenamento jurídico americano. Desde 1990, vale dizer, The Visual Artists Rights Act (VARA Rights), assegura certos direitos morais a alguns artistas, tais como os direitos de paternidade e integridade da obra, o que não impediu a continua evolução da doutrina do fair use por lá.  

Historicamente, ainda, a perspectiva personalista é relativamente atrelada a uma ideia romântica do direito autoral, ligada à imagem do autor solitário que cria a obra de arte sozinho no meio da madrugada. Hoje, porém, esta imagem é pouco real. Grande parte das obras são colaborativas ou criadas sob um regime de produção hierarquizado, frequentemente se revelando muito mais importante o aspecto econômico, e não o aspecto moral. Mesmo sob o aspecto moral, limitações tornam-se importantes de modo a assegurar a todos o direito de serem criativos.  

É inegável, desse modo, que um melhor conhecimento sobre os fatores de ponderação utilizados pela jurisprudência americana e como eles são interpretados pode contribuir para afastar arbitrariedades e conferir maior segurança jurídica e previsibilidade a decisões de cortes brasileiras fundadas na aplicação da legislação civil interpretada a partir de princípios constitucionais.  

 

IV.1. “a” – O propósito e o caráter do uso, incluindo se esse uso se destina a fins comerciais ou é para fins educacionais sem fins lucrativos 

 

  1. O caráter comercial para fins autorais  

 

Quanto maior o caráter comercial menor a chance de o uso ser considerado justificado. Mas, para fins de direito autoral, o que é considerado uma atividade comercial pelas cortes americanas? É certo que atividades com finalidade lucrativa são consideradas comerciais, mas em alguns julgamentos este conceito já foi ampliado ou restrito a depender das circunstâncias. 30 

No famoso caso Napster, por exemplo, a envolver o compartilhamento de músicas na Internet usando os sistemas peer-to-peer (P2P), the 9th Circuit afastou a alegação de que a atividade realizada pelos usuários do programa era realizada sem finalidade lucrativa. Ao revés, entendeu que o comportamento dos usuários do Napster, tendo em vista a realização de cópias não autorizadas de diversos arquivos de música distintos, de forma habitual e numerosa, com a finalidade de economizar os valores que seriam gastos na compra de cópias legítimas, era uma atividade que poderia ser equiparada à comercial, ainda que não houvesse lucro direto pelo usuário.31  

Em outros casos, embora a atividade diretamente realizada pelo usuário com o uso da obra protegida não seja comercial, pode estar ligada a um processo produtivo cuja finalidade é lucrativa, o que levanta algumas dúvidas.  

No caso Sega v. Accollade32, a exemplo, a Accollade fez cópias de parte de um software da Sega para, mediante engenharia reversa, conseguir desenvolver aplicativos e jogos que fossem compatíveis com o console mega drive. Processada pela Sega em virtude de realizar cópias não autorizadas de parte de seu software, a Accollade venceu a demanda.  

Na ação, o 9th Circuit, embora admitindo que a Accollade era uma empresa com finalidade lucrativa, afirmou que a cópia foi realizada com o único objetivo de estudar quais eram os requisitos necessários para desenvolver jogos compatíveis com o mega drive. Conforme destacou, a realização desta cópia era a única maneira de a empresa aprender as exigências do sistema, indicando que a realização de cópia para fins de engenharia reversa é conduta alcançada pelo fair use, mesmo quando o réu se dedica a atividades comerciais.  

Por outro lado, no caso American Geophysical Union v. Texaco33, a decisão foi contrária a alegação de fair use. A Texaco, uma corporação no ramo de exploração de petróleo, criou uma biblioteca e emprega um bom número de cientistas para fazer pesquisas na área de geologia. A fim de manter seus cientistas informados, a biblioteca fazia a assinatura de diversas revistas científicas da área, mas, uma vez recebido o exemplar, realizava inúmeras cópias dos artigos para encaminhar aos respectivos pesquisadores.  

Processada pelas editoras da revista, a Texaco afirmou que as cópias eram realizadas para fins de estudo e pesquisa de seus cientistas. The 2th Circuit, contudo, considerou que, embora o objetivo imediato/próximo dos pesquisadores da Texaco ao realizar a cópia do artigo científico fosse realmente o estudo, a atividade estava intrinsicamente ligada ao desenvolvimento de produtos de alto valor comercial.  Nesta linha, afirmou que o pagamento pelas cópias adicionais seria somente um custo a mais dentro do processo de produção, não sendo razoável para a Texaco se eximir do pagamento de direitos autorais. 

Veja, portanto, que, de acordo com os casos, atividades de estudo realizadas dentro de empresas voltadas a finalidades lucrativas podem ou não ser consideradas fair use a depender de certas circunstâncias. A principal diferença parece ser o fato de, no primeiro caso, a realização da cópia não autorizada ser a única maneira viável para estudar o processo necessário para o desenvolvimento de aplicativos compatíveis, sendo a compatibilidade entre tecnologias algo altamente benéfico à concorrência, à sociedade e aos consumidores de maneira geral. Ao revés, seria extremamente fácil para a Texaco simplesmente pagar aos autores de artigos científicos um valor mais alto por uma licença autoral que lhe autorizasse a realizar um maior número de cópias.  

Por outro lado, mesmo atividades não realizadas por empresas já foram consideradas comerciais para fins de direito autoral, tendo em vista o alto número e a habitualidade com que as cópias eram realizadas. O parâmetro, contudo, vai sendo concretizado pela sucessão de decisões judiciais e o sucessivo enquadramento jurídico de diferentes casos concretos, algo que, no direito brasileiro, é uma atividade a ser realizada pelo STJ, de modo a orientar o julgamento de diferentes instâncias ordinárias do país.  

 

  1. O propósito do uso 

 

Para as cortes americanas, há diversas finalidades que fazem a balança pesar em favor do uso justificado da obra, estando entre elas a jornalística, de comentário e crítica, de sátira e paródia, estudo e pesquisa, engenharia reversa, discussão política e jurídica e contação de histórias.  

Dentro destes diversos propósitos, os quais são meramente exemplificativos, quanto maior o uso transformativo da obra original maior a probabilidade de seu uso ser considerado justificado, ainda que o caráter do uso seja comercial 

Desde Campbell v. Acuff-Rose Music34, julgamento no qual a Suprema Corte Americana debateu se um rap feito pelo grupo 2 Live Crew com base na música “Pretty Woman” constituiria fair use ou ofensa ao direito autoral, nada parece ter adquirido tamanha importância, para fins de uso justificado, do que a finalidade transformativa da obra.  À época, afirmou o Justice David Souter ao escrever a opinião para a Corte:  

“na busca da verdade, na literatura, na ciência e na arte, há poucas coisas, se houver, que realmente são criadas a partir do nada. Todo livro na literatura, na arte e na ciência, toma de empréstimo, e isto é uma necessidade, e usa muito do que é conhecido e foi usado anteriormente. Enquanto eu penso que a todo homem deve ser assegurado o aproveitamento de sua criação intelectual, não se deve constranger o desenvolvimento da ciência.  

[...] 

A doutrina do fair use autoriza e requer das cortes que se abstenham de aplicar a legislação autoral de forma rígida quando, ao fazê-lo, irão sufocar a própria criatividade que a legislação foi feita para incentivar.  

[...] 

O principal objetivo do primeiro fator é investigar se o trabalho novo simplesmente copia a criação original ou, ao revés, acrescenta algo novo, com um novo propósito ou uma nova característica, modificando o primeiro com uma nova expressão, significado ou mensagem; questiona-se, em outras palavras, se e em qual extensão o trabalho novo é transformativo. Embora este uso transformativo não seja absolutamente necessário para considerar o uso justificado, o objetivo do direito autoral, que é de promover as artes e a ciência, é geralmente promovido pela criação de trabalhos transformativos. Tais trabalhos, estão no coração do objetivo assegurado pela doutrina do fair use, que é a criação de um espaço livre de direito autoral.... e quanto mais transformativo é a nova obra, menor importância deverá ser dada aos outros fatores, tal como a natureza comercial da atividade, os quais podem pesar contra o uso razoável da obra.  

 

Apesar de os acórdãos de lá estarem obviamente fundados em uma Constituição diversa, as dificuldades encontradas para determinar a existência ou não de ofensa ao direito autoral a partir do exame de casos concretos não são tão diversas das cortes brasileiras. Afinal, frequentemente juízes e doutrinadores encontram dificuldades em conciliar a aplicação dos artigos 7°, inciso XI, e 29, inciso III, da Lei autoral, segundo os quais são obras intelectuais protegidas “as adaptações, traduções e outras transformações de obras originais, apresentadas como criação intelectual nova”; dependendo de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como “a adaptação, o arranjo musical e quaisquer outras transformações”; com outros dispositivos da mesma lei, tal como os artigos 47 e 48, segundo os quais, “são livres as paráfrases e paródias que não forem verdadeiras reproduções da obra originária nem lhe implicarem descrédito e as obras situadas permanentemente em logradouros públicos podem ser representadas livremente, por meio de pinturas, desenhos, fotografias e procedimentos audiovisuais”. 

Devemos dar ao termo “paródia”, previsto no artigo 47, uma definição mais ampla, a alcançar a crítica e os comentários, mesmo quando não realizados de maneira debochada ou irônica35, ou um conceito mais restrito, o qual abarcaria somente a forma satírica de crítica? A nossa legislação permite as paródias com finalidade comercial? O quão transformativo deve ser um trabalho para não ser qualificado como paródia, e não verdadeira reprodução? Devemos dar razão aos autores que, a partir de uma interpretação literal do artigo 29, inciso III, da Lei n° 9.610/98, defendem a necessidade de autorização do titular mesmo em caso de paródia e paráfrases?  

Diversas destas questões, vale dizer, foram discutidas pelo STJ. A exemplo, no julgamento do Recurso Especial no qual foi decidido o caso ajuizado pela Folha da Manhã S.A. (Folha de São Paulo) contra o site Falha de São Paulo, o ministro Luis Felipe Salomão assentou que “ a legislação que disciplina a manifestação do pensamento pela paródia não prevê como condição para sua licitude e conformidade o fato de não possuir conotação comercial. Conforme visto, este não é requisito de sua perfeição36. 

Por outro lado, em outro julgamento pelo STJ sobre a existência de paródia ou violação ao direito autoral, considerou-se a utilização ilícita, em acórdão resumido na seguinte ementa:  

 

RECURSO ESPECIAL. DIREITOS AUTORAIS. OBRA MUSICAL. LETRA ALTERADA. UTILIZAÇÃO EM PROPAGANDA VEICULADA NA TELEVISÃO. PARÓDIA OU PARÁFRASE. INEXISTÊNCIA. DANOS MATERIAIS DEVIDOS. ALTERAÇÃO DO CONTEÚDO DA OBRA. DANOS MORAIS. OCORRÊNCIA.  

 

[...] 

3. Na hipótese dos autos, a letra original da canção foi alterada de modo a atrair consumidores ao estabelecimento da sociedade empresária ré, não havendo falar em paráfrase, pois a canção original não foi usada como mote para desenvolvimento de outro pensamento, ou mesmo em paródia, isto é, em imitação cômica, ou em tratamento antitético do tema. Foi deturpada para melhor atender aos interesses comerciais do promovido na propaganda.  

4. Recurso especial conhecido e desprovido. 37 

 

Na segunda hipótese, vale dizer, apesar de o STJ ter reconhecido que a canção foi alterada, considerou que a modificação não foi suficiente a conferir a obra novo propósito ou característica. Deu-se também grande destaque à finalidade publicitária/comercial das alterações realizadas na canção. No caso da Falha de São Paulo, ao revés, apesar de também se ter reconhecido o caráter comercial da atividade, conferiu-se grande destaque ao fato de que a finalidade da atividade era precipuamente promover a crítica, o debate e a discussão pública, ressaltando a intrínseca relação entre a atividade de crítica e a liberdade jornalística e de expressão 

Nos dois casos, é importante ressaltar, a aplicação da legislação ordinária foi discutida a partir da finalidade das transformações efetuadas bem como a partir da quantidade e qualidade do material alterado/utilizado, algo que é regularmente feito na aplicação da doutrina do fair use, ainda que não expressamente afirmado nos votos proferidos.  

Assim, embora a legislação autoral brasileira esteja amparada principalmente na lei ordinária, é a ponderação entre os direitos exclusivos do autor e direitos constitucionais como liberdade de expressão e de crítica, acesso à educação e à cultura que orienta, mesmo em acórdãos já proferidos, a interpretação de termos como “paráfrase” e “paródia” bem como define até que ponto a destinação comercial de uma obra ou a ausência de finalidade lucrativa deve constituir fator decisivo para se determinar a existência/inexistência de ilicitude.  

 

IV.1. “b” A natureza/característica da obra protegida e do uso 

 

O direito autoral não protege nem fatos nem ideias, mas apenas expressões, sendo este limite um requisito para conciliar o direito autoral com a liberdade de manifestação de pensamento.   

Em outras palavras, não há proteção autoral à teoria da relatividade, mas, se alguém escreve um livro sobre a teoria, a forma como ele a explica e as expressões utilizadas são protegidas por direito autoral. Igualmente, um jornalista investigativo não possui direito autoral sobre os fatos investigados após o término do trabalho, mas somente sobre a maneira que ele conta estes fatos. Ou seja, apenas o modo como o autor coloca as ideias e compila os fatos são protegidos, mas não os fatos nem as ideias em si. A mesma concepção prevalece na legislação brasileira, que estabelece no artigo 8°, inciso I, da Lei n° 9.610/98, não serem objeto de proteção autoral as ideias, os procedimentos normativos, os sistemas, métodos, projetos ou conceitos matemáticos.  

Tendo isto em vista, compete ressaltar nem todas as obras gozarem do mesmo grau de proteção autoral. Obras de natureza mais factual do que criativa gozam de menor proteção, já que os fatos pesquisados não se tornam propriedade de ninguém. Um historiador ou um biógrafo não devem esperar direito autoral sobre os fatos pesquisados, ainda que tenha dado um enorme trabalho levantá-los, valendo lembrar que o direito autoral protege a criação, e não a descoberta (art. 7°, da Lei n° 9.610). Trabalhos mais informacionais, portanto, gozam de menor proteção do que trabalhos ficcionais.  

Por sua vez, a distinção entre ideias e expressões, embora seja relativamente fácil de entender, muitas vezes revela-se de difícil aplicação prática, sendo útil o exame de alguns parâmetros já aplicados.  

O primeiro deles é a merger doctrine. Conforme a doutrina, algumas ideias somente podem ser expressas de forma inteligível ou eficiente com um número limitado palavras. Quando isto ocorre, a ideia funde-se com a expressão, prevalecendo a liberdade de manifestação em detrimento do direito autoral. A doutrina acaba por ter grande aplicação prática no exame de casos envolvendo a cópia de softwares, pois, em determinada linguagem de programação, algumas “ordens” somente podem ser dadas ao computador a partir de um número limitado de comandos. Assim, nem sempre linhas idênticas de programas de computador distintos levarão o julgador à conclusão de que o réu copiou parte do programa do autor de maneira não autorizada.  

O segundo parâmetro é a scènes à faire doctrine. De acordo com esta doutrina, algumas cenas, personagens são praticamente obrigatórios em alguns gêneros de livros e filmes. Em uma novela, por exemplo, nenhum roteirista pode esperar proteção autoral ao sequestro da mocinha na reta final da trama. Em um filme de guerra, também não se pode esperar proteção autoral à cena do soldado emocionado batendo continência em frente a uma bandeira ou a um caixão nem ninguém pode esperar proteção autoral a um roteiro sobre uma dupla de policiais combatendo o crime.  

Da mesma maneira, ninguém é dono de um estilo artístico ou musical. Monet, embora tenha pintado o primeiro quadro impressionista, não poderia se utilizar do direito autoral para impedir Degas, Cezanne ou Renoir para pintar os seus próprios quadros se utilizando da mesma técnica artística. Igualmente, Oscar Niemeyer não poderia impedir outros arquitetos de se inspirar no estilo modernista, muito embora seja o maior expoente brasileiro deste movimento. Na mesma linha, ninguém é dono da Bossa Nova ou da Jovem Guarda.  

Essa, por sua vez, já é a linha seguida pelo Superior Tribunal de Justiça a partir da interpretação constitucional dos artigos 7° e artigo 8° da Lei n° 9.610/98, a saber:   

 

3. Para não haver o engessamento do conhecimento bem como o comprometimento da livre concorrência e da livre iniciativa, a própria Lei de Direitos Autorais restringe seu âmbito de atuação, elencando diversas hipóteses em que não há proteção de exclusividade (art. 8º da Lei nº 9.610/1998). 4. O direito autoral não pode proteger as ideias em si, visto que constituem patrimônio comum da humanidade, mas apenas as formas de expressá-las.  Incidência do princípio da liberdade das ideias, a proibir a propriedade ou o direito de exclusividade sobre elas. 5. Não há proteção autoral ao contrato por mais inovador e original que seja; no máximo, ao texto das cláusulas contido em determinada avença (isto é, à expressão das ideias, sua forma literária ou artística), nunca aos conceitos, dispositivos, dados ou materiais em si mesmos (que são o conteúdo científico ou técnico do Direito). 6. A Lei de Direitos Autorais não pode tolher a criatividade e a livre iniciativa, nem o avanço das relações comerciais e da ciência jurídica, a qual ficaria estagnada com o direito de exclusividade de certos tipos contratuais.  7. É possível a coexistência de contratos de seguro com a mesma temática (seguro de responsabilidade civil com cobertura para danos ambientais em transporte de cargas), comercializados por corretoras e seguradoras distintas sem haver violação do direito de autor. Licitude do aproveitamento industrial ou comercial das ideias contidas nas obras sem ocorrer infração à legislação autoral, sendo livre o uso, por terceiros, de ideias, métodos operacionais, temas, projetos, esquemas e planos de negócio, ainda que postos em prática, para compor novo produto individualizado, não podendo ser exceção a exploração de determinado nicho no mercado securitário, que ficaria refém de eventual monopólio.38 

 

Em outras palavras, não há proteção a ideias que são consideradas padrão de um certo gênero de narrativa ou de ramo do conhecimento ou de negócio, nem há propriedade de estilo artístico ou musical. Todo roteiro, protejo arquitetônico, design, escultura, pintura, música, software, texto etc. começa com um certo grau de abstração, frequentemente a partir de concepções comuns, e vai ganhando maior especificidade a partir da criatividade do autor. Quando exatamente estas ideias, estilos, padrões, ritmos mais genéricos ganham concretude suficiente para se tornarem expressões protegidas por direito autoral ninguém sabe exatamente, mas, é certo que ninguém pode se apropriar de ideias e concepções comuns, as quais constituem patrimônio da humanidade, como bem ressaltado pelo STJ.  

Um terceiro critério com suporte na natureza da obra é a maior proteção conferida a trabalhos não publicados quando comparados a trabalhos já publicados, tendo em vista a maior vulnerabilidade econômica dos primeiros.  

Enfim, a natureza e as características da obra contribuem para avaliar se o uso dela é ou não justificado, sendo diversos os critérios usados para realizar este tipo de ponderação. A aplicação da legislação autoral compatível com a Carta da República, por sua vez, não pode prescindir destes parâmetros, sob pena de interpretar a lei de maneira incompatível com a Carta Federal 

 

 

 

IV.1. “c”. A quantidade e a relevância da parte da obra protegida que foi usada em comparação ao todo da obra sob exame do magistrado; e 

 

Em um exemplo bastante ilustrativo, Sérgio Branco destaca que, conforme a doutrina do fair use, mesmo citações podem ser consideradas reproduções não autorizadas e, consequentemente, uma ofensa ao direito autoral, “se forem de tal modo longas e repetidas que acabem por representar uma apropriação do conjunto da obra”39.  

Em outras palavras, quanto menos material alguém usa da obra original, maior a probabilidade de o uso ser considerado justificado.  Uma citação de 100 palavras de um poema de 150 palavras tem menos chance de ser considerado fair use do que a mesma citação de 150 palavras de um manual de direito.  

Não obstante, mesmo que você use uma pequena parte, o uso pode ser considerado ilícito se você estiver utilizando o “coração”, a essência do trabalho original. Em um remix, por exemplo, geralmente a probabilidade de ilicitude será maior se você utilizar o refrão da música remixada. Há músicas, por outro lado, que se tornam memoráveis exatamente pelos acordes iniciais, tal como Satisfaction, do Rolling Stones Ou seja, usar exatamente aquele trecho da música que é chamariz para atrair a atenção do ouvinte significa aumentar a probabilidade de uso ilícito.  

Não é algo, contudo, que possa ser analisado de maneira isolada, valendo lembrar que quanto mais transformativo for o trabalho mais material da obra original pode ser utilizado. Há casos, por exemplo, nos quais se reconhece a possibilidade de usar grande parte da obra protegida, como nas paródias, sendo certo que um dos requisitos da paródia é a imitação, mesmo de algumas partes essenciais, de modo a que o público seja capaz de reconhecer o trabalho original e identificar o novo trabalho como uma versão cômica ou crítica do primeiro.   

 

IV.1. “d”. O impacto que o uso pode causar no mercado potencial da obra protegida ou no respectivo valo 

 

Durante muito tempo este foi considerado o fato mais relevante nas avaliações de fair use. Hoje, porém, parece ocupar o segundo lugar, havendo cedido o primeiro para a finalidade do uso, em especial naquilo que se refere ao uso transformativo da obra.  

Quanto maior o prejuízo causado ao autor, menor a probabilidade de o uso ser considerado justificado, premissa que se alinha perfeitamente à cláusula geral prevista na convenção de Berna, segundo a qual os países signatários podem estabelecer limitações aos direitos autorais que “não conflitem com a exploração normal da obra e não prejudiquem injustificavelmente os interesses legítimos do titular do direito”. 

O termo injustificado é negritado porque contraria a legitimidade de uma interpretação literal da lei de direitos autorais, segundo a qual qualquer uso não autorizado gera prejuízo aos autores e, portanto, é ilícito. Ao revés, tanto a cláusula geral prevista na convenção de Berna – que também protege os direitos morais do autor - quanto a doutrina do fair use indicam haver necessidade de sopesar eventual prejuízo causado com os benefícios gerados pelo uso da obra protegida.  

O dano alegado pelo autor pode ser não apenas em razão aos mercados existentes, mas também em referência aos mercados potenciais, o que é harmônico com o disposto no artigo 29, inciso X, da Lei n° 9.610/98, segundo o qual depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades existentes ou que venham a ser inventadas. 

Na jurisprudência americana, geralmente é entendido como mercado potencial aquele mercado no qual há uma razoável expectativa de que o titular ingressará ou desenvolverá ou mercados que provavelmente aparecerão em virtude de inovações tecnológicas ou novos modelos de negócio. Também são entendidos como mercados aqueles que o titular pode ingressar mediante o licenciamento de seus produtos a um terceiro, embora não tenha capacidade de explorar diretamente 

No ponto, é importante ressaltar que o fato de o uso da obra protegida ser realizado por entidade sem fins lucrativos não é algo relevante a ser considerado no exame do quarto fator, pois há grandes mercados gerados exatamente por entidades desta natureza, a exemplo do a envolver a venda de livros para escolas públicas.  

V. Conclusão 

 

A doutrina do fair use ampara-se em artigo da constituição americana que confere ao Congresso o poder to promote the progress of science and useful arts, by securing for limited times to authors and inventors the exclusive right to their respective writings and discoveries. 

A propriedade intelectual por tempo limitado, portanto, possui por lá uma natureza essencialmente instrumental, sendo outorgada na medida em que contribui para promover o progresso das ciências e das artes. Não obstante, o mesmo direito autoral que assegura aos mais diferentes autores e artistas a possibilidade de extrair proveito econômico de sua própria criatividade também impõe ao discurso público inevitável restrição. Nenhum homem é uma ilha e a grande maioria de nós cria obras do espírito a partir de palavras, imagens, vídeos e músicas já existentes em nosso ambiente. 

Embora o nosso direito autoral tenha mais influência de teorias personalistas, as quais reconhecem um intrínseco vínculo entre o autor e a obra, conferindo à propriedade intelectual função mais ampla do que a meramente instrumental, os direitos de acesso à cultura, à educação, à informação e à liberdade de expressão também são constitucionalmente assegurados e, igualmente, conferem maior concretude ao princípio da dignidade humana.  

Não compete ao magistrado interpretar a legislação civil conferindo caráter absoluto ao direito de exclusividade e de maneira incompatível com outros direitos fundamentais. Vale dizer que, ao contrário da liberdade de expressão, direito ao qual o Supremo chegou a afirmar ter caráter preferencial e não ser passível de regulação mediante legislação ordinária, o direito autoral, como todo direito de propriedade, é direito fundamental de caráter marcadamente normativo. Isso significa afirmar que seu perfil é delineado precipuamente pelas normas infraconstitucionais e que ele teria pouco sentido se não fossem os contornos da legislação civil relacionados à atividade. Tal legislação, por seu turno, deve guardar harmonia com toda a Carta da República, e não apenas com o respectivo artigo 5°, incisos XXVII e XXVIII.  

A interpretação da lei autoral de forma literal, “de costas para a Carta da República”, torna-a incompatível com princípios como o da liberdade de expressão. A situação prejudica a capacidade de inovação de uma sociedade e é agravada especialmente em ambientes digitais, já que praticamente qualquer ato praticado na Internet, no Facebook, Whatsapp etc – tendo em vista a tecnologia de fundo – envolve a cópia e a transmissão de textos, vídeos, músicas e imagens, o que seria vedado pela legislação atual.  

Mais, mesmo uma interpretação puramente sistemática da legislação autoral, necessária para harmonizar dispositivos da Lei n° 9.610/98 aparentemente contraditórios, exige algum exercício de ponderação, o qual levará em conta a eventual natureza comercial da atividade, a quantidade e a qualidade do material reproduzido, o interesse público envolvido e o propósito com o qual foi utilizado a obra.  

Vimos em alguns precedentes do STJ, e é possível encontrar diversos outros nas cortes ordinárias, que os tribunais brasileiros já fazem este exercício de ponderação, ainda que nem sempre deixem expressa a existência de uma cláusula geral no nosso ordenamento jurídico a autorizar este exercício.  

Nem a interpretação taxativa das limitações previstas em lei é compatível com a Carta da República nem o é a ideia de que é possível deixar tudo para ser avaliado pelo juiz ordinário, sendo tudo apenas uma questão relacionada a fatos e provas. Cabe ao STJ na interpretação da legislação civil e de forma harmônica com a Carta da República definir qual é o teste de proporcionalidade, ou seja, quais são os parâmetros jurídicos relevantes de ponderação. As cortes ordinárias, por sua vez, devem examinar os fatos e provas a partir destes critérios.  

Tendo isto em vista, a doutrina do fair use é uma excelente fonte, não apenas pela longa e variada lista de casos já julgados, o que pode contribuir para a elucidação de vários casos concretos, mas porque permite uma maior capacidade de adaptação do sistema regulatório à inovação e às novas circunstâncias, em especial ao rápido desenvolvimento tecnológico.  


Publicado originalmente no livro Internet & Regulação

Bibliografia  

 

BARBOSA, Denis Borges. Tratado da Propriedade Intelectual: Tomo I. Rio de Janeiro: Renovar, 2010 

 

BRANCO JUNIOR, Sergio Vieira. Direitos Autorais na Internet e o Uso de Obras Alheias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.  

 

BRAND, Jonathan & GERAFI, Jonathan. The Fair Use/Fair Dealing Handbook. In. http://infojustice.org/archives/29136. Acesso em: 09 ago 2017 

 

HOROWITZ, Steven J. A Free Speech Theory of Copyright. Stanford Thecnology Law Review. 2, 2009. 

 

HUGHES, Justin. Fair Use and its Politics. Legal Studies Paper no. 2015 ‐18. Cambrige University Press, 2011.  

 

LESSIG, Lawrence. The future of Ideas: the fate of the commons in a connected world. Edição Kindle. New York: Vintage Books, 2001.   

 

MADISON, Michael J. A Pattern-Oriented Approach to Fair Use, 45 Wm. & Mary L. Rev. 1525 (2004).  

 

MAX PLANCK INSTITUTE. Declaration on a Balanced Interpretation of "the Three-Step Test” in Copyright Law: Past, Present, and Future 

 

MURRRAY, Andrew. Information Technology Law: the law and society. New York: Oxford University Press, 2013.  

 

NETANEL, Neil Weinstock. Copyright´s Paradox. Edição Kindle. New York: Oxford University Press, 2008. 

 

PATRY, Bill. Fair Use Is Good for Creativity and Innovation. PIJIP Research Paper Series, Paper no. 2017-01, 2017. 

 

SAMUELSON, Pamela.  Unbundling Fair Uses, 77 Fordham L. Rev. 2537 (2009) 

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